Entrevista

Para pesquisadora, reforma política não é uma solução ‘mágica’

Cientista política considera que não se pode jogar a culpa pelo enterro do plebiscito integralmente no PMDB, e entende que partido poderia se fortalecer com mudanças

José Cruz/Arquivo ABr

Figuras como Sarney (d) e Calheiros (e) não necessariamente seriam enfraquecidas pela reforma

São Paulo – A pesquisadora Andréa Marcondes de Freitas, mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e doutoranda na mesma instituição, pesquisadora do Núcleo Instituições Políticas e Eleições do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), entende que é prematuro dizer que a celeridade com que o Congresso Nacional tem deliberado e votado projetos nas últimas semanas, em decorrência das manifestações de junho, representa uma mudança definitiva.

“Não sei se é uma mudança permanente ou só uma resposta para acalmar a população, dar a sensação de que não estão desatentos ao desejo social”, questiona, em entrevista à RBA. Ela também vê com ceticismo a urgência com que vários setores encaram a necessidade da reforma política no país. “Hoje em dia a reforma política é apresentada como algo mágico, que vai transformar o sistema político. E não é mágico. Pode transformar, mas vai ter consequências positivas e negativas, qualquer sistema que a gente adotar, como o nosso sistema hoje”, analisa.

Para a pesquisadora, uma reforma que introduzisse o voto distrital seria prejudicial ao país. O sistema, diz, beneficiaria PMDB, PSDB e PT. “Quem perde são os pequenos partidos”.

Depois das manifestações, como vê a relação entre Executivo e Legislativo, a onda de aprovações de projetos no Congresso?

Não imagino que isso tudo desconfigure a maneira como Executivo e Legislativo coordenam as suas ações, embora nesse momento inicial a gente tenha visto um impacto muito grande na agenda do Congresso. Muitos dos projetos que estão votando tramitam há anos ou pelo menos há muitos meses. Não vi uma mudança muito significativa na maneira como Executivo e Legislativo se relacionam. Também não vejo nas propostas que Dilma apresentou ao Congresso nenhuma novidade. São projetos que ela também já vinha discutindo há algum tempo. A questão dos médicos, há uns cinco meses vi uma entrevista com o presidente do Conselho Nacional de Medicina repudiando a ideia de trazer médicos do exterior para o Brasil. É uma projeto que já estava em gestação há algum tempo, que ela enviou ao Congresso. Acho que o que a gente tem é uma aceleração dos poderes, os políticos tentando dar uma resposta rápida, passar uma sensação de mobilidade, de que estão escutando a sociedade, mas para além da aceleração das votações do Congresso não vejo grandes novidades.

O próprio fato de estarem há anos ou meses tramitando e vários terem sido rapidamente aprovados, ou tramitarem rapidamente, não é em si uma mudança?

Aconteceu uma mudança, não há dúvida. Nunca vi o Legislativo votar tantas coisas de uma vez só, talvez só na Constituinte (1988) a gente tenha visto esse número de coisas serem votadas em um dia, em uma semana. Nesse sentido tem uma mudança. Mas não sei se é uma mudança permanente ou só uma resposta para acalmar a população, dar a sensação de que não estão desatentos ao desejo social. Se vai ser uma mudança permanente ou não, vamos ver nos próximos meses. Acho que algumas mudanças vão ser permanentes, por exemplo a apreciação dos vetos presidenciais, um aspecto bastante interessante da reação do Legislativo, efetivamente lerem os vetos assim que chegarem, colocarem na pauta. Mas por enquanto acho que é bom ser cauteloso, pensar nisso como uma reação que provavelmente vai diminuir nos próximos meses, supondo que as manifestações vão diminuir e se volte ao processo de tramitação normal das matérias.

Você concorda com as avaliações segundo as quais não há como mudar o país politicamente com o chamado peemedebismo, como entende o filósofo da Unicamp e do Cebrap, Marcos Nobre?

O Marcos Nobre é meu colega no Cebrap e já discutimos várias vezes essa tese dele do peemedebismo. O PMDB é de fato um partido muito poderoso, um partido-chave para se aprovar projetos no Legislativo. Isso é inquestionável. Daí a chamar isso de peemedebismo, não sei se é necessário… Não sei se é um processo consolidado, histórico, com influências socioeconômicas em todas as esferas da sociedade suficiente para se acrescentar esse “ismo”…

Mas talvez seja um processo consolidado do ponto de vista político…

O PMDB é fundamental no processo de coalizões. É um ator central, por conta do número de cadeiras que possui, e está presente em todos os governos desde a redemocratização. Na minha tese de doutorado, uma das coisas que analiso são os processos de alteração no interior do Legislativo, dos projetos do Executivo, e o PMDB é de longe o partido responsável pelo maior número de alterações nesses projetos, o que mostra a dimensão do poder dele. Para além de ele estar nos ministérios, em postos-chave, decidindo políticas, no Legislativo também está influenciando essas políticas. Concordo em parte com Marcos Nobre, também não gosto da ideia de ter um partido tão poderoso que tenha de ser tão central e essencial, o ideal no sistema democrático é que haja alternância de poder, gerando modificações nos grupos-chave no poder. Mas não acho que a formação de coalizões em si seja um problema, ao contrário, é uma solução para se governar num sistema com tantos partidos, é mais democrático do que seria o governo de um partido só. É preciso conversar com mais atores quando você vai fazer uma política e mais setores da população vão ser representados. Mas concordo que o fato de o PMDB estar sempre presente nas coalizões como um ator decisivo talvez não seja o melhor dos mundos.

Não parece evidente que o PMDB não quer uma reforma política profunda, que, segundo algumas análises, colocaria seu poder em risco?

Muita gente não quer a reforma, não é só o PMDB. Colocar tudo na conta do PMDB não é muito justo. A gente deposita muita esperança na ideia de reforma política. Mas não tem como, por exemplo, mudando o sistema eleitoral, mudar o que está na base dos partidos. Você pode diminuir o número dos partidos. Só que o PMDB é um dos maiores e se a reforma cortar, vai ser embaixo, nos partidos pequenos. A reforma política traz insegurança não só para os parlamentares, mas também para nós, eleitores. Uma grande transformação na forma como se vota tem consequências inesperadas, para todos.  Se você pensa nas consequências da reforma pensando na maneira como os eleitores se distribuiriam hoje, o PMDB provavelmente não se enfraqueceria, mas se fortaleceria.

Mas isso não dependeria de que tipo de sistema eleitoral seria adotado? Você seria a favor de qual sistema eleitoral?

O PMDB é o partido que mais elege prefeitos, isso desde a redemocratização. Se você muda isso para o voto distrital, que vai recortar os estados em distritos, quando for recortar, a depender do tipo de critério, você pode enfraquecer ou fortalecer um determinado partido, o que pode ser feito propositalmente, como foi feito nos Estados Unidos diversas vezes. Há uma série de estudos que mostram como decisões políticas no recorte dos distritos beneficiaram o Partido Republicano ou Democrata. Sou a favor de que o sistema eleitoral não mude, que fique exatamente como é hoje. No sistema distrital vence o sujeito que tem mais votos. Supondo que os eleitores votassem exatamente como votaram nas últimas eleições, o PMDB não perderia vagas, muito pelo contrário, ele aumentaria seu poder. Quem perde são os pequenos partidos, como PSOL, vários pequenos partidos desapareceriam. Se eles não vão conseguir, os votos vão para alguém. Significa que PSDB, PMDB e PT ganham mais cadeiras. Os grandes passam a ser mais fortes e os pequenos desaparecem.

Mas, independentemente de partidos que têm representatividade, como PSOL, há outros que são literalmente de aluguel. Não seria bom que esses acabassem, numa democracia mais forte?

Se a gente pudesse dizer simplesmente “eu quero que fique esse ou aquele”, talvez eu fosse favorável a uma reforma política. Mas dificultar o acesso de novos partidos ou acabar com os pequenos e fortalecer os grandes não me parece fazer sentido. O sistema proporcional (que temos hoje) garante a representação de um maior número de grupos sociais. Se a gente for para um plebiscito acredito que não haveria mudança nesse sentido, as pessoas têm medo de mudança. Num sistema onde só vence quem tem o maior número de votos (sistema majoritário), o que se faz é descartar os votos de todos os outros. Na minha concepção o sistema proporcional para o Legislativo parece mais justo porque acaba por representar mais fielmente a sociedade. Talvez, mudando, diminuísse o número de partidos no Legislativo, a gente tivesse coalizões menores, mais eficientes, talvez o número de projetos que o presidente mandasse ao Congresso fossem aprovados com maior facilidade. Mas eu também não sei se a gente quer isso. Isso não implica necessariamente na mudança do perfil dos políticos que a gente tem lá. Me parece que a insatisfação que a sociedade está mostrando nessas manifestações é com quem está lá neste momento. Diminuir o número de partidos não significa que essas pessoas que estão lá agora vão desaparecer da política.

Dizer que as pessoas têm medo de mudança não é contraditório com as manifestações, que justamente pedem mudança?

No plebiscito parlamentarismo ou presidencialismo (1993), a vitória do presidencialismo foi esmagadora. Alguns cientistas políticos advogam que não havia informação suficiente, mas o fato é que os eleitores preferiram ficar com o que era conhecido, familiar. Hoje em dia a reforma política é apresentada como algo mágico, que vai transformar o sistema político. E não é mágico. Pode transformar, mas vai ter consequências positivas e negativas, qualquer sistema que a gente adotar, como o nosso sistema hoje.  A coisa do distrito é perigosa porque quem vai definir os recortes são os políticos na hora de formatar a lei. Ainda que tenha essa ideia meio mística de plebiscito, de que as pessoas vão decidir, não é a decisão sobre um sistema ou outro que vai formatar a lei. A lei tem um milhão de detalhes que vão ser definidos por políticos, e pelos que estão hoje lá. Eles também vão se defender quando estiverem formatando a lei.