justiça

Livro traça o perfil de parentes das vítimas dos Crimes de Maio de 2006

Obra 'Mães em Luta - Dez Anos dos Crimes de Maio' conta a história de 15 pessoas que perderam familiares no sangrento mês que chocou São Paulo

Arquivo EBC

Em maio desse ano a Prefeitura de São Paulo inaugurou um memorial às vítimas no Centro Cultural Jabaquara

São Paulo – “Foi o caso mais escandaloso que já vi”, define o jornalista Bruno Paes Manso, por dez anos repórter do jornal O Estado de S.Paulo e atualmente pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) e colaborador da Ponte Jornalismo.

O caso, em questão, é o de Vera Lúcia dos Santos. No dia 15 de maio de 2006, Vera perdeu a filha Ana Paula, brutalmente assassinada. Acompanhada do marido, Ana Paula saia de uma padaria, à tarde, em Santos, litoral paulista, quando homens encapuzados pararam o casal e o matou. Grávida, ela faria no dia seguinte a cesariana da filha que não chegou a nascer.

Naquele mês de maio, 494 pessoas foram assassinadas em apenas dez dias, como consequência da resposta das forças de segurança do estado de São Paulo aos ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Ao final de 30 dias, a contabilidade mórbida fechou em 505 civis e 59 agentes do Estado assassinados.

Os indícios, diz Bruno Paes Manso, são de que muitas das mortes foram prováveis execuções, com pouquíssimos casos esclarecidos. O de Vera Lúcia entrou para a estatística dos casos sem solução, apesar de ela suspeitar de quem eram os responsáveis, mas não ter tido coragem para denunciar.

Na mesma Santa Casa onde Ana Paula daria à luz a sua filha, ela foi velada ao lado do marido. Naquele dia, um burburinho em volta de Vera a alertava para não velar seus familiares. Ela, entretanto, decidiu ir em frente com o ritual de despedida. A violência também não parou. Durante a cerimônia, um atentado à bala feriu duas pessoas presentes, deixando uma delas tetraplégica.

A tragédia particular de Vera Lúcia não terminou com o sepultamento da filha, do genro e da neta. Dois anos depois, ela caiu numa armação envolvendo uma acusação por tráfico de drogas, foi julgada, condenada e cumpriu três anos em regime fechado. “Escrever sobre isso é uma confissão do nosso fracasso. Ela ficou presa e eu não fiz nada”, lamenta Bruno Paes Manso.

“Na época, eu não soube da história dela, não me chamou a atenção. Por algum motivo não foi pauta, não foi notícia. Escrever esse perfil agora é quase uma confissão do fracasso como jornalista”, diz.

Bruno não se conforma com o caso. Questiona como pôde uma Justiça que não conseguiu dar respostas para a morte da filha, do genro e da neta de Vera, tempos depois a condenar por tráfico de drogas numa circunstância questionável, envolvendo um flagrante com a moto usada por ela, uma cabeleireira conhecida no bairro, com salário baixo e nenhum indício em sua vida pessoal que a pudesse relacionar com o tráfico de drogas. “Nunca vi tanta injustiça como no caso dela”, afirma o jornalista.

Como pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), Bruno critica o modo como são condenadas muitas pessoas acusadas de tráfico de drogas no Brasil, a partir de provas frágeis e demasiada importância do depoimento pessoal do policial. “A Vera é uma mulher que tem a vida regrada, com emprego fixo e mesmo assim, e depois de tudo, é condenada. Escrever seu perfil foi quase uma autopenitência.”

Mães em Luta

Escrito por jornalistas da Ponte e organizado por André Caramante, o perfil de Vera Lúcia dos Santos integra o livro Mães em Luta – Dez Anos dos Crimes de Maio, que reúne outros 14 perfis de parentes de vítimas da violência daquele mês macabro e que originou a criação do movimento Mães de Maio.

Crimes de MaioRede Brasil AtualRede Brasil AtualRede Brasil Atual“Escolhemos histórias representativas das lutas dessas pessoas. A ideia é fazer com que a luta delas sirva de exemplo para outros movimentos populares”, explicou André Caramante, que, em sua carreira, denunciou a existência de sete grupos de extermínio formado por policiais e ex-policiais e recebeu, em 2013, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, a mais importante homenagem em direitos humanos do Brasil.

“As Mães de Maio formam o movimento popular mais importante e autêntico do Brasil, sem qualquer ligação política”, afirma. Caramante é um dos fundadores do site jornalístico Ponte.org, dedicado ao tema dos direitos humanos, justiça e segurança pública. “O jornalismo da Ponte tem lado e é o lado das Mães de Maio. Na Ponte, queremos que a voz do povo tenha o mesmo valor que o de que qualquer autoridade.”

Com prefácio da jornalista Eliane Brum, o livro terá 300 exemplares distribuídos em bibliotecas e organizações não-governamentais, além do resultado das vendas revertido para a luta dessas mães que, dez anos depois, ainda clamam por justiça.