Tempos sombrios

Brasil e Chile, 1973: países unidos no combate à democracia

Livro detalha colaboração brasileira, inclusive da diplomacia, à ditadura dos militares vizinhos

Reprodução
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Logo depois do golpe, milhares de pessoas foram levadas ao estádio Nacional, em Santiago. Muitas não saíram com vida

São Paulo – “O abandono à tortura de brasileiros presos no Estádio Nacional e a recusa em solicitar salvo-condutos foram discutidos dentro do gabinete do ministro das Relações Exteriores. A chancelaria integrou, institucionalmente, a repressão, e o resultado foi a violação, de modo sistemático, de direitos de brasileiros no exterior. Boa parte dos diplomatas brasileiros preferiu não se envolver, ou se resignou ao silêncio. Outros chegaram a se arriscar agindo contra a ditadura — por exemplo ao transportar listas de torturadores em malas diplomáticas ou ao repassar informações a perseguidos. Mas são estes a exceção que confirma a regra do colaboracionismo.”

O trecho acima resume, de certa forma, a história contada em O Brasil contra a democracia (Companhia das Letras, 496 págs.), do jornalista Roberto Simon. O livro detalha o apoio da ditadura brasileira ao terror chileno, implementado em setembro de 1973, quando um golpe derrubou Salvador Allende, o presidente socialista eleito três anos antes. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a junta que assumiu o poder no Chile.

Apoio à nova ditadura

“Cronologicamente, a intervenção brasileira ocorreu em três tempos: primeiro, com a vitória de Allende, quando o Brasil passou a trabalhar para minar o governo do Chile; segundo, no momento do golpe de 1973, quando Médici concedeu apoio total a Pinochet e à construção da nova ditadura; e, finalmente, com a consolidação do novo regime e a solução do “problema chileno” para os brasileiros, quando Geisel decidiu reduzir a proximidade excessiva do Brasil com o Chile, de modo geral, e com a figura de Pinochet, em particular, embora continuasse a apoiar o regime chileno no subterrâneo”, escreve o autor.

Quando a “junta” assumiu – aos poucos, o general Augusto Pinochet conquistaria o controle absoluto –, o Brasil vivia os últimos meses do governo Médici. Em 15 de março de 1974, ele seria substituído por Ernesto Geisel. O livro começa justamente com o momento da troca de general-presidente.

Brasil, ponto de partida

O primeiro mandatário a chegar a Brasília foi o próprio neoditador chileno, que também fazia sua primeira viagem oficial. “Com Pinochet, viajou a Brasília e ao Rio uma seleta mostra de funcionários da nova ditadura sul-americana. Um deles, o assessor da chancelaria Tomás Amenábar, levava uma encomenda especial na mala de mão: a última versão da lista de exilados brasileiros que estavam no Chile no momento do golpe. O catálogo humano reunia centenas de nomes, endereços, países de fuga e o que mais pudesse interessar aos anfitriões em festa”, narra Simon.

Além da afinidade política, as ditaduras conciliam interesses econômicos. “Antes de o golpe contra Allende completar um mês, o Conselho de Segurança Nacional do Brasil já avaliava um pedido de exportação de cerca de 450 veículos militares à junta chilena. (…) Ao final, os contratos firmados nos meses após a morte de Allende fariam o Brasil, subitamente, saltar para a posição de segundo maior fornecedor de armas ao Chile, atrás apenas dos Estados Unidos, onde o Congresso começava a limitar vendas em razão das denúncias de violações dos direitos humanos”, relata o jornalista. Assim, observa, para os ditadores brasileiros “a mudança de regime em Santiago era também um grande negócio”.

Desconvidado?

Apesar de tanto em comum, o autor do livro afirma que Pinochet “foi inequivocamente desconvidado” para a festa de posse de Geisel. Segundo ele, o novo presidente pretendia iniciar um processo de “abertura” política, “e, com as notícias sobre tortura e desaparecimentos no Chile que ganhavam o mundo, preferia que o chefe da junta chilena não aparecesse ao seu lado nas fotos da investidura”. Mas, de acordo com o relato, o chileno precisava mostrar que consolidara o poder interno, se fez de desentendido e embarcou para Brasília para apertar a mão do colega brasileiro, em um período de ditaduras no continente sul-americano. Três anos depois, seria a vez da Argentina.

“O gol mais triste” do Chile: com o estádio “arrumado” às pressas, seleção entrou em campo para enfrentar um adversário inexistente (Reprodução)

Independentemente disso, a colaboração entre Brasil e Chile era efetiva. O Ministério das Relações Exteriores, diz uma fonte, recusava o regresso de brasileiros por orientação do Serviço Nacional de Informações (SNI). “A cúpula do Itamaraty tinha pleno conhecimento da lei e sabia que a estava violando”, escreve Simon. O Itamaraty, inclusive, encheu-se de fúria ao tomar conhecimento de que o cônsul brasileiro no Chile havia ajudado três brasileiros a deixar o país. Eles estavam detidos no estádio Nacional, em Santiago.

Prisões e tortura no estádio

O tradicional estádio de futebol, palco do bicampeonato mundial do Brasil, em 1962, carrega um triste lembrança. Foi para lá que a recém instalada ditadura chilena começou a despejar um sem-número de presos. Muitos morreram ali. “Corredores por onde antes circulava a torcida agora estocavam pilhas de cadáveres anônimos sobre poças de sangue. A área do velódromo se tornou complexo de tortura, com caixas de som tocando Beatles e Rolling Stones a todo volume para abafar urros de dor.” Uma das vítimas daqueles dias foi o cantor Victor Jara, barbaramente assassinado.

Havia brasileiros – tanto presos como agentes da repressão. A ditadura enviou agentes para o estádio Nacional. Exilados brasileiros e presos chilenos desmentem versões oficiais sobre o que esses agentes faziam no local. Em uma sala, por exemplo, haveria uma “réplica” das salas de tortura em funcionamento no Brasil. Presos chilenos teriam sido torturados “sob supervisão” de instrutores brasileiros. Desde o início, houve “cooperação entre os dois porões”, como descreve o autor do livro.

O jogo que não existiu

Nesse mesmo estádio Nacional, em 21 de novembro de 1973, foi escrita uma página vergonhosa do futebol. Estava marcado o jogo de volta da repescagem entre o Chile e a então União Soviética, que disputavam uma vaga para a Copa do Mundo que seria realizada no ano seguinte, na Alemanha (a Ocidental, porque as Alemanhas ainda estavam divididas). No jogo de ida, em Moscou, 0x0 – o árbitro, por sinal, foi o brasileiro Armando Marques. Devido ao golpe no país sul-americano, o governo russo afirmou que sua seleção só disputaria a partida em “campo neutro”. Com isso, queria demonstrar solidariedade ao governo deposto.

Os chilenos acreditaram que era blefe. Pagaram para ver. Transferiram às pressas milhares de presos que permaneciam no estádio Nacional. A seleção mandante entrou em campo sozinha. Não havia adversário. Os soviéticos sequer viajaram. O juiz apitou o início do “jogo”, e o time da casa foi trocando passes na direção da meta adversária, até marcar o “gol” – “o mais triste da história do Chile”, como seria lembrado. Foi o suficiente para o árbitro encerrar a partida. O Chile estava classificado para a Copa (não passaria da primeira fase, com dois empates e uma derrota). Na sequência, a seleção vitoriosa enfrentou o convidado e contratado Santos. Sem Pelé, que estaria contundido, os brasileiros golearam: 5 a 0.

Passado e presente

O livro começou a surgir, de alguma maneira, em setembro de 2013. Repórter do jornal O Estado de S. Paulo, Simon fez uma série de matérias alusivas aos 40 anos do golpe no Chile. Encontrou um passado muito próximo ao presente. Entrevistas e pesquisas o levaram a descobrir documentos que ampliaram o leque de assuntos. Em entrevistas, o jornalista busca questionar duas visões históricas: que o Brasil atuaria de forma articulada com os Estados Unidos para minar Allende e o Itamaraty teria feito feito seu trabalho à margem da ditadura.

Inesperada mesmo foi a reviravolta ocorrida no Brasil de hoje. “Eu pensava que o livro seria, sobretudo, uma reflexão acerca de um passado relativamente protegido pelo presente democrático. Vi, porém, a evolução política brasileira conferir à pesquisa uma contemporaneidade e relevância inesperadas”, escreveu o autor na apresentação. “Se o livro expõe a obscenidade das atuais tentativas de falsificação da história, não era esse seu objetivo inicial. Agora, talvez seja sua principal contribuição.”