Com 50 denúncias e 60 denunciados em 10 anos, MPF segue em busca de punição para agentes da ditadura
Lei de Anistia continua sendo usada como pretexto, mas o Brasil já sofreu condenações internacionais
Publicado 13/06/2021 - 16h46
![Desaparecidos Reprodução](https://www.redebrasilatual.com.br/wp-content/uploads/2021/06/dita1.jpeg)
São Paulo – Apesar de condenado internacionalmente, o Brasil segue resistindo a levar adiante investigações sobre casos de violações de direitos humanos durante a ditadura. Punições, então, parecem fora de cogitação. O Ministério Público Federal está prestes a completar 10 anos de denúncias por meio de ações criminais contra agentes do Estado. Mas essas ações seguem esbarrando no Judiciário sob o mesmo argumento, questionado juridicamente: a Lei de Anistia.
O site https://justicadetransicao.mpf.mp.br/ lista 49 casos de ações em Varas federais de seis estados, principalmente São Paulo. Os denunciados chegam a 60, com alguns nomes se destacando pela quantidade de citações, como Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo do atual presidente, e Sebastião Curió, que inclusive visitou o Palácio do Planalto na atual gestão. O que evidencia a simpatia do atual governo por agentes formalmente acusados de crimes cometidos durante a ditadura.
Justiça de Transição
Segundo a procuradora regional da República Eugênia Gonzaga, desde que o Ministério Público constituiu um grupo de Justiça de Transição, a partir de 2010, foram instaurados mais de uma centena de inquéritos. Nem todos viraram denúncias, lembra, pela dificuldade, em muitos casos, de se conseguir provas. “Infelizmente, o tempo dificulta a instrução desses inquéritos”, diz a procuradora, em entrevista ao podcast do MPF em São Paulo. Mas há também a questão política, que atravessou décadas e governos e se mostra uma barreira difícil de superar.
“Essa resistência não é só do Poder Judiciário. Acho que existem várias situações que nos levam a esse quadro. Por exemplo, a ditadura no Brasil foi muito longeva, teve um apoio muito forte, da classe média, do empresariado, da mídia”, diz Eugênia, que presidiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Atualmente, coordena o Grupo de Trabalho Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC).
Transição imperceptível
Ela acredita que a ditadura fez suas próprias “escolas sem partido”, desinformando a população sobre o que acontecia e aconteceu naquele período. “A gente não tinha informação nenhuma a respeito. Já tinham conseguido formar uma geração sem nenhuma noção do que acontecia. A transição para a democracia foi quase imperceptível.”
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A procuradora contesta o entendimento, comum no Judiciário, que a Lei da Anistia, aprovada em 1979, impede a punição a agentes do Estado. “Não foi um pacto com o outro lado, foi um pacto entre os apoiadores da ditadura. Não levantar o passado, não revelar o destino dos corpos. Então, o Poder Judiciário seguiu alinhado com isso, o MP também. Esse pacto se deu em cima de corpos insepultos. Quando nós começamos a falar em responsabilização, éramos um grupo muito pequeno no MPF, mas pelo menos o tema começou a ganhar corpo.”
Anistia: ações na gaveta
Para Eugênia, a aplicação automática da lei de 1979 é resultado “de uma interpretação que não se sustenta juridicamente, não está escrita na Lei de Anistia”. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a lei, em ação que segue pendente, devido a recursos. Há ainda outras ações relativas ao tema. Todas na gaveta do relator, ministro Luiz Fux, atual presidente da Corte. “O Supremo entende pela constitucionalidade da Lei de Anistia e pela sua aplicação aos agentes da ditadura, esse foi o grande equivoco”, avalia a procuradora.
No mesmo ano do julgamento do STF, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por não investigar o caso Araguaia. Pela Constituição, o Brasil deve se submeter aos tribunais internacionais na questão dos direitos humanos. “Então, o Supremo pode até declarar que a Lei de Anistia é constitucional, vale para os agentes, mas não para graves violações de direitos humanos”, observa Eugênia, observando que a sentença da Corte Interamericana é auto-aplicável. “Ninguém teve coragem de romper com essa ideia de que a LA perdoou tudo”, lamenta a procuradora.
Denúncia contra torturador
Em pelo menos um caso, a decisão judicial foi reformada. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), no Rio de Janeiro, ratificou denúncia contra o sargento Antonio Waneir Pinheiro de Lima, o “Camarão”, réu em acusações de sequestro, cárcere privado e estupro de Inês Etienne Romeu, em 1971. Sobrevivente da chamada “Casa da Morte”, em Petrópolis, ela morreu em 2015.
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No ano passado, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu alento aos defensores de punições aos crimes cometidos na ditadura. O tribunal determinou que a segunda instância volte a analisar uma ação por violação de direitos humanos por três agentes do Estado. Um dos ministros apontou jurisprudência no STJ sobre a imprescritibilidade de ações civis fundamentadas em “atos de perseguição política, tortura, homicídio e outras violações de direitos fundamentais”. Para Eugênia Gonzaga, “o caminho cível está aberto”.
Condenações internacionais
As investigações do MPF levaram a várias ações emblemáticas, como a do caso Riocentro, com seis denunciados. Ou a relativa a Frei Tito, que a Justiça barrou. Cinco agentes também foram denunciados pela tortura e morte do ex-deputado Rubens Paiva (confira acima a lista completa de ações propostas pelo Ministério Público). Se internamente as denúncias encontram dificuldades para prosseguir, o Brasil voltou a ser condenado pela Corte Interamericana em 2018, desta vez por não apurar e punir responsáveis pela morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.
“O Brasil se vinculou à Corte Interamericana porque quis”, lembra Eugênia Gonzaga, sobre a obrigação de o país cumprir as sentenças. “Se não quer cumprir, o mais correto seria se desvincular formalmente.” Mas ela observa que isso poderia levar o Brasil a sofrer sanções de caráter geopolítico.
Três comissões levaram a avanços
Apesar das dificuldades e da falta de ações dos governos, a procuradora identifica avanços, como a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, em 1995, e da Comissão de Anistia, em 2002. Sob o comando de Paulo Abrão, por exemplo, a Comissão de Anistia passou a agir no sentido de buscar não só reparação financeira, mas política, com caravanas realizadas por todo o país e apresentação de pedidos formais de desculpas do Estado brasileiro. Depois veio a Comissão Nacional da Verdade, que apresentou seu relatório final em 2014.
As dificuldades aumentaram no período recente, com a eleição do atual presidente, defensor da ditadura e favorável à tortura. Ao ver na impunidade o “cerne” da violência do Estado, a procuradora – ela mesmo objeto de represália do governo – vê um retrocesso difícil de mensurar. “O dano que esse goerno está gerando com essa postura de apoio ao genocídio, à morte, à milícia, a coisa de passar boiada, não sei quanto tempo o Brasil vai demorar pra assimilar, pra reparar. (…) O duro é que o Brasil não prezou a democracia o suficiente para rebater essas questões quando elas começaram a surgir, lá atrás.”