Nunca mais

Perto dos 60 anos do golpe, MPF faz documentário ‘para não esquecer’ dos crimes e dos mortos

Procuradores lembram das ações para punir responsáveis e das dificuldades enfrentadas pela Justiça de Transição: “Por cima dos corpos”

Reprodução/YouTube
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Eugênia Gonzaga lembra do 8 de janeiro: 'As pessoas estão achando ainda que é possível viver sem instituições'

São Paulo – A pouco mais de dois meses dos 60 anos do golpe civil-militar, o Ministério Público Federal (MPF) lançou documentário que fala dos esforços para punir os responsáveis pelo crimes cometidos durante aquele período. Uma tarefa que coube a um pequeno grupo de procuradores, responsáveis pelo que se chamou de Justiça de Transição. Ou seja, a passagem da ditadura para um regime democrático.

Se não conseguiram punir os agentes do Estado responsáveis por crimes contra a humanidade e graves violações dos direitos humanos, esses procuradores, e também as famílias das vítimas, conseguiram fazer com que os casos chegassem ao sistema internacional de Justiça. Assim, tornaram-se emblemáticas condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em caso como o da Guerrilha do Araguaia e do jornalista Vladimir Herzog.

Transição equivocada

Como diz, por exemplo, a procuradora da República Eugênia Gonzaga, no Brasil a transição ocorreu de forma completamente equivocada. “Passando por cima dos corpos, da questão dos desaparecidos políticos. Não foi um pacto das famílias, das mulheres, dos filhos.”

Ela conta que também era difícil convencer os colegas da área criminal sobre o tema. O entendimento era de que a Lei de Anistia resolvera a questão. Ou que os crimes tinham prescrição. O que contraria o Direito Internacional: crimes contra a humanidade não prescrevem.

Araguaia, divisor de águas

O também procurador Marlon Weichert recorda das expedições dele e alguns colegas à região do Araguaia, na região Norte. “Foi um divisor de águas. Nos deparamos com a presença de um medo muito grande dos camponeses de falar sobre a Guerrilha do Araguaia (…) O Exército ainda estava presente.” Ubiratan Cazetta, do mesmo grupo de procuradores, lembra dos relatos do major Sebastião Curió sobre as ações militares – soldados misturados à população ou se fazendo passar por engenheiros. Sem contar os casos de tortura e assassinatos.

A guerrilha foi dizimada. A própria Comissão Nacional da Verdade, anos mais tarde, encontraria documentos produzidos pelos próprios órgãos de segurança. “Se utilizou napalm”, diz o ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles, que também integrou a Comissão da Verdade.

Dezenas de denúncias

O procurador Antonio do Passo Cabral, que também é ex-juiz federal, cita ainda o julgamento da Lei de Anistia no STF, até hoje questionado. Desde 2010, acrescenta Eugênia Gonzaga, o MPF fez mais de 100 inquérito relacionados ao período da ditadura. Até agora, são mais de 40 denúncias na área criminal. “Pode ser pouco em relação a outros países, mas foi um grande avanço”, pondera. “Era quase um mundo paralelo”, afirma a procuradora, que também presidiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Ela se refere à quantidade de crimes cometidos, sem a devida ação do Judiciário.

“Teve pessoas que desapareceram porque estavam panfletando na esquina, sem nenhum crime. Quantas pessoas foram presas, quantos operários presos injustamente, apanharam dentro das fábricas, apenas para ser exemplo”, lamenta Eugênia. Sem contar os “suicidados”, como observa Claudio Fonteles. Presos que eram mortos pelos agentes, mas cuja causa do óbito era apontada como suicídio ou “resistência à prisão”.

Com pouco menos de 30 minutos, Para Não Esquecer traz relatos de membros do Ministério Público sobre a época da ditadura e da atuação na Justiça de Transição. Essas entrevistas compõem o acervo do Memorial do MPF no Rio de Janeiro. Tem também depoimentos dos artistas plásticos Antônio Manuel e Cildo Meireles.

“Uma ditadura é corrupta por essência. É assassina por essência. Ela viola as liberdades de todo mundo por essência. Não existe ditadura boa”, afirma Marlon. Alguns depoimentos chamam a atenção para o fato de muitas pessoas, inclusive jovens, defenderem o período autoritário. “Esse impacto do que é uma ditadura, uma intervenção militar, precisa ser narrado”, defende o procurador Felício de Araújo Pontes. “As pessoas estão achando ainda que é possível viver sem instituições”, alerta Eugênia Gonzaga, referindo-se ao 8 de janeiro de 2023.

Assista ao documentário: