Bolsonaro e pandemia

Para cientista política, Forças Armadas não querem assumir o governo

Professora Maria do Socorro Braga analisa papel do ministro Braga Netto do governo Bolsonaro e os riscos da ascensão de militares ao poder à democracia

Valter Campanato/Agência Brasil
Valter Campanato/Agência Brasil
General Braga Netto (esq.), “presidente operacional”, se transformou no novo alvo do “gabinete do ódio”

São Paulo – As especulações das últimas semanas sobre eventual pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro, a respeito de sua renúncia, um “golpe branco” ou outras saídas menos ortodoxas que pudessem afastá-lo do cargo parecem ter saído de pauta. A crise iniciada no início da semana, desencadeada pela ameaça de demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, de sua pasta, por destoar do presidente, foi momentaneamente contornada, mas permanece latente. A solução passa pela função de “presidente operacional” que passou a ocupar o general Walter Braga Netto, chefe da Casa Civil, diante da incapacidade política e gerencial de Bolsonaro.

Mas a confusão é permanente. Braga Netto passou a ser, entre terça e esta quarta-feira (8), o novo alvo do chamado “gabinete do ódio”, comandado pelo vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

O protagonismo do general tem algumas interpretações. Os setores militares ligados ao governo teriam tomado a decisão de dar um “cala a boca” em Bolsonaro, com seu caráter incontrolável, incapaz de governar, errático e discordante de autoridades de todo o mundo sobre a pandemia de coronavírus. Por isso, Bolsonaro teria virado uma espécie de “rainha da Inglaterra”, que reina mas não governa.

Em outra hipótese, um desdobramento da primeira, Bolsonaro teria ouvido um ultimato. Ou Mandetta fica no ministério, ou os militares deixariam o governo. Nesse sentido, foi significativa a fala do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, ao jornal O Estado de S. Paulo na segunda-feira (6).

Braga Netto, centro de governo

“Ele (Braga Netto) não está enquadrando ninguém, mas apenas fazendo a verdadeira governança. Assim, a Casa Civil passa a atuar como um verdadeiro centro de governo”, afirmou. Ele acrescentou que o chefe da Casa Civil “está fazendo o que sabemos: colocar ordem na casa, coordenando as ações ministeriais, de modo que haja sinergia, cooperação e, como consequência, os esforços do governo sejam mais eficazes”.

“Estamos falando de uma conjuntura onde o Executivo está isolado, inclusive dos governadores, dos demais poderes e de boa parte da população. Nesse quadro, se, por exemplo, as Forças Armadas ameaçam deixar o governo, eles (os membros do grupo palaciano e do clã Bolsonaro) tinham que voltar atrás”, diz a cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, da Universidade Federal de São Carlos, sobre o recuo de Bolsonaro da intenção de demitir Mandetta.

O isolamento do presidente brasileiro é nítido e não passa despercebido nos maiores centros políticos do mundo. Em sua mais recente edição, a revista inglesa The Economist publicou texto intitulado “Jair Bolsonaro se isola, no caminho errado” (tradução livre). Segundo a revista, “apenas quatro governantes do mundo continuam negando a ameaça à saúde pública representada pela covid-19”.

Efeitos colaterais

A publicação afirma que dois desses líderes “são destroços da antiga União Soviética, os déspotas da Bielorrússia e do Turquemenistão” e o terceiro é Daniel Ortega, da Nicarágua. “O outro é o presidente eleito de uma grande democracia, ainda que maltratada. O enfraquecimento por Jair Bolsonaro dos esforços de seu próprio governo para conter o vírus pode marcar o início do fim de sua presidência.”

Maria do Socorro não acredita que as Forças Armadas queiram assumir o governo. “Aliás, hoje, é difícil saber quem quer assumir o país. A versão sobre golpe branco, ao meu ver, não tem sentido. Faz mais sentido os segmentos que ainda apoiam o governo estarem descontentes e tentarem nova estratégia.”

A professora avalia que, se setores das Forças Armadas, da direita no Congresso Nacional e representantes do MDB e do DEM no governo abandonassem o barco, o isolamento de Bolsonaro e de seus aliados mais próximos seria, para eles, dramático. “Nesse caso, ficariam mais isolados ainda. Teriam só as igrejas evangélicas e o setor ideológico, cerca de 29% ou 30% da população.” Por isso, a estratégia seria não perder o pouco que se tem de apoio.

Maria do Socorro lembra que representantes da direita, como os governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), do Rio, Wilson Witzel (PSC), e de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), antigos aliados do presidente, estão se “cacifando” politicamente no enfrentamento da crise e do próprio Bolsonaro.

Nordeste

Já os governadores do Nordeste formaram uma aliança para, eles próprios, enfrentarem a pandemia independentemente das políticas discriminatórias e levianas do chefe do Executivo.

“Por que o MDB e o DEM não tiraram seus representantes do governo? Era a hora de tirar, e aí o isolamento ficaria realmente grande”, avalia a professora da Ufscar.

Bolsonaro tem aliados, para ele, importantes dos partidos da direita tradicional. Casos dos ministros Tereza Cristina (Agricultura, Pecuária e Abastecimento),  Onyx Lorenzoni e o próprio Luiz Henrique Mandetta, todos do DEM, e Osmar Terra, do MDB, ex-ministro da Cidadania, que chegou a ser cotado a assumir a Saúde.

Já o sucesso de um processo de impeachment talvez fosse natural, dada a insatisfação crescente com Bolsonaro nos meios institucionais, não apenas de governadores e Congresso Nacional, incluindo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), mas também de ministros do Supremo Tribunal Federal.

“Políticas genocidas”

Em entrevista ao portal Uol nesta quarta-feira (7), o ministro Gilmar Mendes, por exemplo, usou tom duro ao criticar a atuação do presidente da República durante a pandemia de coronavírus, dizendo que “a Constituição não permite que o presidente adote políticas genocidas, políticas que afetem de maneira crucial, global, a vida da população”.

“Talvez se conseguisse até facilmente desencadear um processo de impeachment – acredita Maria do Socorro –, que é um ato politico. Pode ser que logo mais à frente se viabilize. Mas hoje, dada a conjuntura de pandemia, parece quase impossível.”

Para ela, não há clima na América Latina para que os militares tomem o poder como em décadas passadas, “por mais que haja vários autoritarismos surgindo”. Em sua opinião, as Forças Armadas, como um todo, não apoiam o governo, mas apenas uma parte delas, principalmente membros da reserva. E também não interessa aos militares assumir os riscos de governar o país envolto em tamanha crise – embora um fracasso de Bolsonaro possa afetar diretamente a imagem dos militares. Daí o papel de Braga Netto de assumir o “centro do governo”.

“Os 30 anos de estabilidade democrática, desde a Constituição de 1988, ainda são elemento suficiente para sustentar a democracia brasileira, por maiores que sejam os problemas que a gente tenha com Bolsonaro, tentando cada vez mais ir aos limites das instituições democráticas”, analisa.

Com caos social e na saúde, os meios políticos hesitam em precipitar mudanças sem saber quem assumiria o lugar de Bolsonaro. O cálculo talvez seja o de “deixá-lo sangrar e mostrar suas incapacidades, incoerências e irresponsabilidades”.

“Colocar um militar, no caso Mourão, no poder, seria muito sério para o país, seria resvalar em algo perigoso em termos democráticos. Seria os militares voltando ao poder. Um retrocesso muito forte em relação a tudo o que foi construído nos últimos 30 anos”, acredita a professora da Ufscar.