crise humanitária

Na Inglaterra, número de crianças em busca de asilo cresce quase 50%

Em Kent, porta de entrada do país para quem vem do continente europeu, chegada de crianças e adolescentes sozinhos, sem a companhia de um adulto, mais que dobrou nos últimos seis meses

Rachel Costa/Opera Mundi

Jovem atravessa ponte sobre rio Stour em Kent; condado é o que mais recebe jovens desacompanhados na Inglaterra

Opera Mundi – “Eu estou no meio. Minha expressão não é nem alegre nem triste”, diz a tira de papel fixada sobre a aquarela, na parede da organização não governamental KRAN, na cidade de Canterbury, no condado inglês de Kent. No painel sob a mensagem é possível ver pintado o perfil de um rapaz negro dividindo o quadro em duas partes: de um lado o mapa da Eritreia e uma escola, de outro, o do Reino Unido e a catedral de Canterbury, um famoso ponto na cidade turística inglesa.

O jovem eritreu Sam*, autor do desenho, é um dos mais de 770 adolescentes que chegaram a Kent sozinhos, sem a companhia de um adulto, em busca de asilo. Só nos últimos seis meses, o número de jovens no condado na mesma situação de Sam mais que dobrou, consolidando Kent como o principal receptor desses adolescentes dentro da Inglaterra e gerando uma demanda inesperada para as organizações locais. No total, entre 2014 e 2015, foram feitos 2.168 pedidos de asilo na Inglaterrra por menores de 18 anos – um aumento de 46% em relação ao período anterior.

“Estamos recebendo muitos pedidos de atendimento que não damos conta de atender”, lamenta Jessica Maddocks, porta-voz para a KRAN, sigla em inglês para Rede de Ação pelos Refugiados de Kent, em entrevista aOpera Mundi. A instituição, que mantém programas educacionais para mais de 100 adolescentes, é uma das que tem feito o que pode para dar resposta à demanda cada vez maior de meninos e meninas desacompanhados. Além de fazer-se sentir nos números, a crise migratória também tem gerado mudanças no perfil dos jovens que chegam. “Antes nunca tínhamos recebido sírios”, diz a porta-voz.

Dentro da pequena sala de aula mantida pela instituição na região industrial de Cantebury, onde o desenho de Sam* ocupa uma das paredes, perguntas sobre a jornada são proibidas. É uma maneira sutil de ajudar esses meninos e meninas a superar o passado e focar no futuro, que, embora longe da violência da guerra, está distante de ser um tempo de segurança.

Rachel Costa / Opera Mundi
Desenhos de crianças e adolescentes assistidos pela KRAN, sigla em inglês para Rede de Ação pelos Refugiados de Kent

Ponto de chegada

Um estudo realizado pela Universidade de Brighton mostrou que, se somados, o condado de Kent e o distrito de Croydon, na região metropolitana de Londres, reúnem um terço dos adolescentes sozinhos em busca de abrigo na Inglaterra. “O Children Act de 1989 diz que o cuidado é de responsabilidade da primeira autoridade local na qual a criança ou adolescente busca auxílio”, explica Joanna Wilding, uma das pesquisadoras responsáveis pelo levantamento, que será publicado em sua íntegra no fim de outubro.

A busca por Kent explica-se pela posição geográfica do condado: é ele a parte do território mais próxima à Europa continental. No ponto mais estreito do Canal da Mancha, apenas 33 quilômetros separam Inglaterra e França. É também em Kent que desemboca o Eurotunel e é por essa ligação, fazendo a travessia escondidos em caminhões de carga, que a maior parte desses meninos e meninas consegue entrar na Grã-Bretanha, oriundos dos campos de refugiados em Calais.

De acordo com as contagens do grupo Calais Migrant Solidariety, apenas neste ano ao menos 15 pessoas morreram na tentativa de fazer a travessia pelo túnel que liga os dois países, várias delas adolescentes.

Aqueles que prosperam no intento, ao descer dos caminhões em que se esconderam, geralmente estão em Kent ou Croydon. “A determinação do Children Act é importante para evitar que eles fiquem abandonados até encontrar uma autoridade local que se responsabilize por eles. Entretanto, também leva a grandes concentrações em alguns pontos, o que torna mais difícil para essas crianças acessar os serviços necessários”, avalia Wilding.

Em Kent, o governo local recentemente fez um apelo a David Cameron, primeiro-ministro britânico, pedindo por um reforço de 5,5 milhões de libras no orçamento para o atendimento aos jovens desacompanhados que não param de chegar.

Uma das medidas já tomadas para tentar conter a crescente demanda foi a transformação de uma antiga casa de repouso em centro de passagem para abrigar esses jovens. Com capacidade para até 40 pessoas, o espaço recebeu seus primeiros moradores no fim de setembro. Não sem gerar descontentamento em grupos da extrema direita local, que iniciaram uma campanha contra a iniciativa por considerar os jovens refugiados “um risco aos alunos da escola primária vizinha ao centro”.

Novos desafios

Reações despropositadas de grupos organizados são apenas uma das questões que esses adolescentes precisam enfrentar em sua nova vida. O processo de acolhimento, não raro, é repleto de obstáculos e de incertezas. “Tenho momentos de felicidade, de tédio, de coisas boas e de coisas más… Minha vida é mista aqui”, diz a mensagem de outro rapaz da Eritreia, também atendido pela KRAN.

Isso porque pôr os pés na Inglaterra, ao contrário do que muitos deles imaginam, não significa o direito de se estabelecer no país em definitivo. Como mostram as estatísticas do próprio Home Office, órgão local para o controle da imigração, a maior parte das decisões favoráveis aos adolescentes desacompanhados lhes permite viver no Reino Unido somente até completar 18 anos, e não o direito de permanecer indefinidamente no país.

Entre julho de 2014 e junho de 2015, esses vistos provisórios corresponderam a 91% das decisões positivas do órgão (aquelas em que o pedido não é recusado). Isso significa que, ao completar a maioridade, esses jovens terão de recorrer novamente ao órgão para pedir a extensão do direito de permanecer no país, o que nem sempre tem um final feliz.

Portas fechadas

Um levantamento recente feito pelo Bureau de Jornalismo Investigativo britânico mostrou que, nos últimos seis anos, 605 jovens afegãos que chegaram ao País sem suas famílias foram extraditados após completar a maioridade. “A perda do direito de viver no Reino Unido após os 18 anos é algo que acontece com regularidade. Infelizmente”, conta Jessica Maddocks.

Algumas histórias reunidas pela organização Children’s Society, uma das principais instituições de defesa de crianças e adolescentes no Reino Unido, dão uma ideia dos impactos dessa política. Entre os vários casos atendidos pela ONG, houve uma jovem que recebeu uma conta de mais de mil libras após ter de recorrer ao serviço de emergência de um hospital público. A equipe que a atendeu considerou que, por ter o visto vencido, ela não teria o direito de usar os serviços médicos mantidos pelo governo. Outro rapaz, após completar os 18 anos, teve cancelado o atendimento psicoterapêutico que recebia para superar os traumas causados pelo passado de violência.

Joanna Wilding, que teve contato com diversos adolescentes em busca de refúgio na Inglaterra durante sua pesquisa, diz que, de modo geral, a recepção após a entrada no país influencia muito a maneira como eles se sentem. “A impressão que tive foi a de que a situação corrente impacta mais sobre o bem-estar deles que as experiências que eles viveram durante o caminho. Se eles se sentem seguros agora, eles se sentem felizes. Já quando eles seguem sem se sentir seguros, eles demonstram estar ainda angustiados”, resume a pesquisadora.

À deriva

A situação de Kent pode ser definida como a ponta visível de um imenso iceberg sob o qual se escondem os milhares de meninos e meninas que se encontram espalhados pelos países europeus em busca de refúgio. O perfil tem se tornado cada vez mais frequente, de acordo com membros da organização Médicos Sem Fronteiras.

Isolada por água de todos os lados e sem uma política específica que lhes facilite o acolhimento, a Grã-Bretanha acaba por ser um ponto de difícil acesso para a maior parte dos refugiados. As últimas estimativas, divulgadas em junho deste ano, mostram que o Reino Unido foi responsável por apenas 4,4% de todos os pedidos de asilo recebidos por estados membro da União Europeia entre o segundo semestre de 2014 e o primeiro de 2015.

Isso tem aumentado a pressão para que o país assuma mais responsabilidades, em especial com relação aos jovens. “A organização Save the Children tem defendido a ideia de que o governo britânico aceite 3.000 crianças e adolescentes desacompanhados que hoje estão em outros países europeus”, informa um dos porta-vozes da Children’s Society. Até agora, entretanto, falta uma resposta contundente do gabinete do primeiro-ministro.

*Nome fictício

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