Juan Martín Guevara

Irmão de Che Guevara diz que é preciso ler a biografia do revolucionário argentino

'Tín' lembra que os pais eram antimilitares e antipadres: 'Meu velho era um informal, da informalidade mais absoluta e na nossa casa nos incentivavam a discutir, para que não tivéssemos sempre a mesma opinião. A casa não era comum, era uma casa de loucos'

sul 21/reprodução

Tín Guevara: “Para ser um médico revolucionário, é preciso ser antes um revolucionário”

Buenos Aires – Juan Martín Guevara é irmão de Che Guevara. Também foi o preso político 449 da última ditadura argentina. Como o célebre revolucionário, se uniu a luta pelo socialismo na década de 50. Chancho – como Ernesto era chamado em família – era 15 anos mais velho. Tín tem hoje 71 e é o mais novo de cinco irmãos (além de outros três, do segundo casamento do pai). Vive em Buenos Aires, onde tem um negócio próprio de vinhos, no bairro portenho de Mataderos. No passado, fazia o mesmo com livros e charutos cubanos. Seu projeto mais importante é a criação da ONG Por las huellas del Che* que pretende trabalhar com a afirmação e o estudo do pensamento desse símbolo de rebeldia que foi assassinado em La Higuera, na Bolívia, em 9 de outubro de 1967.

Que significado tem para você a palavra revolucionário, baseado na história do seu irmão?

Ernesto, que como médico se dava conta que não podia resolver os problemas, foi pouco a pouco se tornando mais revolucionário. Em um discurso para estudantes de medicina, disse a eles que para ser médico revolucionário, é preciso ser antes um revolucionário. Médico apenas, não. Pode ser muito cristã a postura médica de ajudar. Pode alguém ser médico de uma empresa e se importar apenas em operar e cobrar. Esse é outro tipo de médico. De qualquer maneira, no contexto atual, o médico que é uma boa pessoa é uma boa pessoa e ponto. Eu digo isso e me sinto mal com Cuba, mas Cuba pode ser solidária sem que isso tenha um resultado que incorpore revolucionariamente as pessoas.

O que a organização que você fundou, Por las huellas del Che, se propõe a fazer para honrar a memoria do seu irmão?

Uma das preocupações da associação que formamos é difundir o pensamento dele. Não é a humanização épica, militar, guerrilheira, não. Falamos da ação e do pensamento, do que ele pensava e do que fez. Mais que uma preocupação, a nossa é uma ocupação.

Em que estágio se encontra hoje a associação?

Diria que está em stand by. Oficialmente tem uma pessoa jurídica mas existem problemas internos a resolver e eu não quero fazer uma coisa só por fazer. Não estou sozinho nisso. Perdi a conta de quantas palestras já fiz sobre Che. Tenho ido a escolas, a bairros e a ideia é transmitir o pensamento dele a jovens de 16, 17, 18 anos.

Você faz as palestras na condição de presidente da associação, de irmão de Che ou de militante revolucionário?

Como irmão de Che, mas não quero, todavia, tratar do tema da associação. Estou com várias coisas. A minha loja de vinhos, chamada Epicúreos, não deu muito certo, mas como não gosto de desistir, continuo até hoje. Tive uma editora e uma tabacaria de charutos cubanos. Não me saio tão bem nos negócios, mas com Por las huellas del Che não podemos errar.

Um dos conceitos centrais de Che é o do novo homem. Esse tema surge nas palestras com estudantes e jovens?

Eu sempre digo que é preciso ler biografias, E é preciso ler a de Che. São mais de três mil textos que ele escreveu e, com frequência, procuro levar alguns a essas palestras. Ou seus discursos, que leio em parte ou no todo. O Socialismo e o Homem em Cuba, por exemplo, é uma carta que ele escreveu ao jornalista uruguaio Carlos Quijano, onde faz a proposta mais profunda sobre o período de transição entre o capitalismo e o socialismo, e o que significa o novo homem. E está muito claro que ele não é idealista, que pensa que porque fizeram uma revolução isso é o novo homem. Não, o capitalismo está impregnado nas nossas cabeças. Che disse que não é uma questão econômica ou de estrutura somente. É uma questão social e de cultura. E deve-se saber que, se não largamos as velhas ferramentas do capitalismo na transição, não se consegue mudar a consciência e a mentalidade das pessoas.

Você esteve em Cuba, em 1959, quando houve a Revolução. Como foi viver aquele momento emblemático?

Sim, subimos a Escambray, na região central da Ilha, subimos ao Comando. É incrível a sintonia que havia entre Fidel e Che. Em primeiro lugar, depois de uma noite, Che se incorporou ao Movimento 26 de Julho. O primeiro comandante que Fidel nomeou foi um argentino, depois incluiu seu irmão Raúl, que, ao final, também foi nomeado comandante. Quando mandou Che para Las Villas, ele era o chefe dessa zona. E a ordem que lhe deu foi de manter a unidade em Escambray.

O que mais marcou naquele reencontro com seu irmão, quando você tinha 15 anos e ele já era um revolucionário famoso?

Tudo… porque não era somente meu irmão. Primeiro, eu já tinha militância estudantil e minha família era politizada. Rapidamente o que acontecia em Cuba nos influenciou e nos afetou, não somente como família. A mim, quando às vezes me perguntam sobre a morte de Ernesto, respondo que senti uma dor muito grande como companheiro e como referência e outra como irmão. As duas coisas. Para a nossa geração foi uma perda inigualável. Além disso, eu a defini naquele momento, como uma derrota do continente. Foi a derrota de uma possibilidade real de transformação do continente. Os muchachos americanos voltaram a nos vencer (risos). Aliás, faz um tempo que eles vêm nos derrotando, por isso temos que pensar muito bem…

Você falou de sua família, o que ocorreu quando Ernesto se transformou em Che?

Quando Ernesto já era Che e eu estava na Argentina militando, as coisas ficaram mais complexas. Colocaram bombas na nossa casa na rua Aráoz, a metralharam, minha mãe esteve presa uns meses. Nesse tempo, Guido (José María Guido) era o presidente e ela conseguiu sair do país rapidamente. Estava doente, com câncer e, com tudo isso, piorou muito.

Pagaram um preço muito alto por ser a família de Che Guevara?

O preço que pagamos não foi pequeno. Roberto, um dos meus irmãos, esteve preso no México, porque tinha saído do país. Invadiram a casa da Celia, nossa irmã, quando estava indo para o Uruguai. Ela conseguiu sair, depois viveu na Europa e em Cuba. Todos os filhos de Roberto foram para Cuba, assim como os de Ana Maria (a outra irmã). Ela também foi para lá. Toda família, de uma maneira ou de outra, foi afetada. Nós éramos militantes.

Até onde os cinco irmãos Guevara tiveram a influência dos pais?

O que posso contar é como era a família e tirar, talvez, conclusões sobre isso. Para começar, quero esclarecer sobre o que se diz, que éramos uma família oligárquica e aristocrática. O que define a oligarquia é o dinheiro e o poder. Em minha casa não havia dinheiro ou poder. Um carro na história de uma família não significa isso. Nenhuma casa própria e cinco casas alugadas em Córdoba não significam dinheiro e poder. Minha mãe tinha estudado em um colégio de freiras e não podia nem ver uma batina. Meus pais eram antimilitares e antipadres. Meu velho era um informal, da informalidade mais absoluta e na nossa casa nos incentivavam a discutir, para que não tivéssemos sempre a mesma opinião. A casa não era comum, era uma casa de loucos.

Como era Ernesto na intimidade, antes de ser Che?

Um cara capaz de tomar mate debaixo de uma ponte com os linyeras (moradores de rua), ou fazer os quatro mil quilômetros que fez de bicicleta motorizada, ou embarcar em navios como enfermeiro indo para Trinidad, ou seja, até o Caribe e Venezuela. Ele passou a vida andando pelo mundo. Chamávamos Ernesto de Chancho. Era extrovertido, mas também introvertido. Em alguns momentos observava e ficava calado, em outros falava qualquer coisa. Em geral, era muito provocativo, com um humor ácido, queria gerar uma reação nas pessoas.

O que você conhece do Brasil? Já viajou pelo país?

A última vez que estive lá foi há quatro ou cinco anos. De férias, fui até Fortaleza, sempre pela costa. Para o interior, nem tanto. A lugares tipicamente visitados por argentinos, não tenho ido (risos). A Bahia fui várias vezes, também pelas praias, assim como no sul. Andei bastante pelo Brasil, mas sem discutir sobre política. Fui a uma feira de filatelia e a outra de livros em São Paulo.

Conheces mais Cuba do que o Brasil?

Sim, até porque é um país bem menor… Como disse, fui representante de charutos cubanos e me convidaram para vendê-los no Brasil. Eu dizia para o representante que estava lá que o Brasil é como três países. Uma coisa é o norte, outra o centro e outra o sul. Três coisas diferentes, enormes, em especial São Paulo e Rio. Mas o norte e o sul tem suas idiossincrasias, são totalmente distintos. Eu disse que era necessário abrir três empresas, não poderia assumir sozinho algo tão grande. E o Brasil produzia charutos naquele momento, havia alguns cubanos exilados que produziam. Sem falar que tinha uma certa resistência no mercado brasileiro que na Argentina não existia.

Você esteve preso na Penitenciária de Alta Segurança de Serra Chica por oito anos e três meses na última ditadura argentina. Que lembranças tem desse período?

Em Serra Chica tínhamos um número, eu era o 449. Passei por um pavilhão da morte onde havia revistas a qualquer hora. Eu era considerado irrecuperável pela ditadura. Os torturadores muitas vezes estiveram lá. Muitas! Então, minha posição diante da vida é a de que tenho um plus de vida. Se fosse religioso, deveria agradecer a Deus, a sorte, a natureza ou Ogum, porque meu santo é Ogum. O que posso dizer é que na prisão nos ajudávamos muito. Mas também discutíamos e criticávamos.

Você foi detido em 1975, antes do golpe de 24 de março de 76. A partir desse momento se agravaram as condições da prisão para os presos políticos?

Em 1975, tínhamos rádio, jornais e visitas. Mas depois do golpe deixamos de ter. Começamos a não sair da cela. Devo ter passado três anos e meio em solitárias. E, às vezes, até seis meses na cela de castigo. Não se tinha ideia do que estava acontecendo, e não falo de fora da prisão, nem do que ocorria no corredor. O objetivo era que a gente enlouquecesse.

Carlos Araújo, ex marido da presidenta Dilma Rousseff, nos disse em entrevista que o torturado prefere morrer e por isso se atirou debaixo de um carro no Rio de Janeiro, em uma tentativa de suicídio. Você chegou a pensar nisso enquanto esteve preso nessas condições?

Existem situações que são muito diferentes. Não posso julgar um desaparecido que está com um capuz. Veja, eu tive desejo de morrer. Fiz uma longa greve de fome, apenas bebia água. E outra menor, sem comer nem beber. Nós éramos conscientes do que queríamos, do que podia nos acontecer. O que, quem sabe, nunca imaginamos foi a quantidade de sequestros, os desaparecimentos e tudo o que ocorreu. Mas estávamos em uma situação de risco, com possibilidades de morrer ou ser torturados, isso era muito claro. Além disso, uma possibilidade que tinham os Montoneros era a pílula de cianureto. Nós do PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores) não.