Educação

Pobres, negros e índios chegam pela porta da frente

62% da população apoia política de cotas, que revoluciona o ensino superior no país

População se mobiliza a favor das cotas (Foto de divulgação)

Voltar à escola e ter um trabalho longe da rotina extenuante do canavial. O sonho do índio terena Agenor Custódio, que dos 12 aos 18 anos cortava cana em Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, foi conquistado aos 39 anos, ao se formar em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Agora, ele pode passar na seleção do programa de mestrado da instituição e disputar uma vaga na área de audiovisual ou na carreira acadêmica. A 230 km da capital, a UFSCar é uma das dez melhores universidades do país, segundo o Ministério da Educação.

Agenor teve dificuldades para estudar. Adolescente, largou a escola para trabalhar. Aos 21 anos matriculou-se no ensino médio, que só concluiu aos 28 – mesmo assim, entrou na Faculdade de Turismo numa universidade pública de seu Estado. Estava no terceiro ano, mas parou por falta de dinheiro para alimentação, moradia e transporte. Mas o sonho não morreu. Em 2008 ingressou na UFSCar graças à cota para indígenas; em março, ele colou grau. “De outra forma seria impossível entrar numa universidade pública, gratuita, prestigiada, estudar, pesquisar e ter a chance no mestrado” – diz.

Sua vizinha de república, Vanessa David de Campos, 23 anos, aluna de Engenharia de Produção, tem grandes expectativas. Ingressou na UFSCar em 2008, na cota dos negros. Primeira universitária da família, a futura engenheira cresceu na periferia pobre de Taubaté (SP). Estudou em escola pública e, até o ensino médio, acreditava que toda faculdade era paga. Aprendiz numa indústria de autopeças, Vanessa fez modelação industrial – um curso técnico no Senai, junto com o colegial –, para entrar mais cedo no mercado de trabalho. Nos fins de semana, tinha aulas num cursinho popular.

Aos 18 anos, viajou sozinha pela primeira vez e se matriculou em São Carlos. Sem computador portátil e com dinheiro que mal dava para o xerox, enfrentou dificuldades. “Tive muitas desilusões. Embora não seja declarado, o racismo existe” – afirma.

Por uma nova cultura. E bota cultura nisso

Graças às cotas, Vanessa, Edmar e Agenor chegaram lá (Foto: Paulo Pepe)Ex-metalúrgico, Edmar Neves da Silva, 21 anos, do terceiro semestre de Ciên-cias Sociais, entrou na faculdade por meio da cota para oriundos da escola pública. Cursou a primeira metade do ensino fundamental na rede municipal de Mogi-Guaçu (SP), depois seguiu na rede estadual até o ensino médio. “A formação foi muito ruim” – lembra o estudante, que queria chegar ao ensino superior público, gratuito e de qualidade.

O que o ajudou a suprir as falhas foi uma bolsa de um curso pré-vestibular particular, que ganhou em 2010, quando trabalhava de dia e estudava à noite e nos fins de semana. Dirigente do diretório acadêmico da UFSCar, Edmar é o segundo da família numa faculdade. A irmã mais velha cursou Administração com bolsa integral do Programa Universidade para Todos (ProUni) e faz pós-graduação em Marketing. Os pais não concluíram o ensino fundamental.

Porém, ainda há gente que paga colégios caros para os filhos chegarem às universidades públicas, que se incomodam de vê-los dividir salas de aula com negros, indígenas e estudantes pobres – antes da adoção de cotas, em 2004, eles não estariam ali. Esse incômodo acabará quando a elite se conscientizar de que as boas escolas públicas são mantidas pelos impostos de todos.

Há também casos como o da fisioterapeuta Sílvia Martinez, que pagou boa escola particular para a filha que ficou na lista de espera da Universidade de Brasília (UnB). “Se não houvesse vagas reservadas para as cotas, ela teria entrado. É uma mudança de mentalidade, que leva gerações para ser assimilada. Mas é uma questão de justiça social, vale a pena” – opina.

Um estudo dos pesquisadores Jacques Velloso e Claudete Batista Cardoso, da UnB – a primeira a adotar cotas para negros e pardos, em 2004 –, verificou que as cotas mais que dobraram as chances desses candidatos. Para completar, em agosto de 2012, a presidenta Dilma sancionou a lei de ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. O prazo é de quatro anos para que as instituições reservem metade das vagas para estudantes do ensino médio de escolas públicas. Desse percentual, metade é para estudantes de famílias com renda de até 1,5 salário mínimo per capita.

A voz da elite branca

Cada vez mais negros conseguem vagas nas universidades (Foto de divulgação)Por meio da imprensa conservadora, os porta-vozes da classe social que o ex-governador paulista Cláudio Lembo batizou de “elite branca” espalham uma visão enviesada, segundo a qual as cotas ferem a igualdade e o mérito acadêmico, são ineficazes porque o problema está na péssima qualidade do ensino básico público, e não na má distribuição de renda, rebaixam o nível acadêmico, desfavorecem os brancos mais pobres em detrimento dos negros e prejudicam essa população ao estigmatizá-la como incompetente.

Todos esses mitos vão sendo derrubados. Em 2006 e 2008, pesquisas do instituto Datafolha indicavam que mais de 80% da população aprovava as cotas. Em fevereiro, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma pesquisa do Ibope que mostra que 62% dos entrevistados – dois em cada três brasileiros – apoiam cotas em universidades públicas para alunos negros, pobres e estudantes da escola pública.

A pesquisa foi realizada em todas as regiões brasileiras e constatou que é maior (77%) o apoio às cotas para os de baixa renda, seguido por 64% de aprovação às baseadas em critério de raça. A oposição é maior entre os entrevistados brancos, das classes A e B, moradores das capitais, nas regiões Norte e Centro-Oeste. E menor entre os que estudaram da 5ª à 8ª série, emergentes da classe C, nordestinos e moradores do interior. Segundo o jornal, os que buscam ascensão social e econômica são mais simpáticos a políticas que aumentem suas chances de chegar à faculdade. A pesquisa mostra que, em todas as camadas sociais, o apoio é maior que a contrariedade.

“De 2004 a 2011, a proporção de pessoas pertencentes à faixa de menor renda aumentou no ensino superior, passando de 0,6% para 4,2%. No mesmo período, a inserção dos negros saltou de 5% para 8,8% e dos pardos, de 5,6% para 11%” – diz o professor João Feres Júnior, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Como vencer o preconceito

Flagrante: o doutor Icaro atende seus pacientes (Foto: Lúcia Lima)Na avaliação de frei David Raimundo dos Santos, 60 anos, diretor da ONG Educação e Cidadania de Afrodescendentes (Educafro), a aprovação das cotas é fruto dos argumentos sólidos dos defensores da medida. “Com humildade, sabedoria e vigor, as pessoas esclarecem à opinião pública, o que não ocorre com os críticos que estão em 90% das reportagens contrárias publicadas nesses 10 anos” – diz.

O juiz federal William Douglas, 45 anos, do Rio de Janeiro, era contrário às cotas dos negros, mas passou a defendê-las. Branco, filho de pai lavrador e mãe operária, ele não crê mais em “heroísmo”. “Minha filha estuda em colégio caro, de professores bem pagos e ótima estrutura, mas a maioria das crianças pobres estuda em escolas sem professores, carteiras ou banheiros. Não é justo exigir o mesmo desempenho na hora de entrar na universidade” – diz.

As cotas valem apenas para o ingresso na faculdade. A permanência e a conclusão são por conta do aluno. Com o mesmo grau de exigência nos cursos, os cotistas superam as deficiências do ensino básico e rendem igual ou melhor que os não cotistas. Em 2008, o desempenho acadêmico dos cotistas negros era de 6,41 e dos vindos de escolas públicas 6,56, acima do 6,37 dos não cotistas. Além disso, a taxa de conclusão dos cursos era maior.

Embora as universidades estaduais paulistas não adotem o sistema de cotas, a Unicamp concede pontos adicionais na nota do vestibular dos egressos da rede pública. A comissão para o vestibular constatou que a nota média desses alunos beneficiados foi mais alta que a dos demais.

Outra resposta ao discurso de que a política de cotas seria demagógica e os beneficiados abandonariam o curso vem de um estudo da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A maioria dos cotistas já cumprira a maior parte dos créditos das disciplinas e o seu desempenho estava entre os mais altos em cursos como Matemática, Física, Engenharia Elétrica, Ciências Biológicas, Odontologia, Farmácia, Filosofia, Comunicação, Nutrição, Psicologia e Direito. Os cotistas também estavam menos sujeitos a reprovação por faltas.

Primeiro aluno a ingressar na UFBA por meio de cotas, Icaro Vidal formou-se em Medicina em 2011. Negro e oriundo da escola pública, viu graduarem-se inúmeros grupinhos de estudantes brancos, formados nas melhores escolas particulares de Salvador. Nunca fez parte de nenhum deles, tampouco sentiu na pele preconceito por ser cotista. Mas sabe que existia, de forma velada.

Médico do Programa de Saúde da Família da Prefeitura de Salvador e servidor estadual num instituto de criminalística, Icaro torce pela educação brasileira. “As cotas facilitam a entrada na faculdade, mas não são tudo. É preciso melhorar a escola pública. Atendo adultos e crianças de 12 anos que não sabem ler nem escrever.”