Impactos da Copa 2014

Operário do Itaquerão: ‘Quanto mais adianto a obra, mais perto fico de ser removido’

Jaílson, que vive no entorno do estádio do Corinthians, é símbolo das contradições da Copa: enquanto dá duro para acelerar as obras, corre o risco de ver sua casa no chão

Luciano Onça

Jaílson faz questão de dizer a todos os seus companheiros a situação em que se encontra: trabalhando pela Copa e podendo ser removido de sua casa por ela

São Paulo – “Aquele primeiro bar ali é do Jaílson, procura ele lá que você vai achar”, me disse, de dentro de seu próprio bar, apontando para a direita, o motorista Pedro Fortunato, o Seu Pedro, figura notória da Comunidade da Paz, em Itaquera, zona Leste de São Paulo.

O relógio marcava 17h20, mas a noite já ensaiava aparecer às margens do córrego do rio Verde quando chego ao bar indicado, uma birosca típica de favela, que  toca alto um pagode romântico dos anos 1990 – enquanto estive ali, além dos pagodes de Belo, Alexandre Pires e Revelação, ouvi o rap dos Racionais MC’s e Sabotage.

O comércio que complementa a renda do operário é simples: chão de terra batida, iluminação de uma única lâmpada (a energia vem de uma “gambiarra”, assim como a água), um pequeno balcão ao fundo, algumas poucas pessoas bebendo e jogando sinuca. Encontro os olhos claros de Jaílson atrás do balcão. Ele me estende a mão calejada pelo trabalho braçal e nem me deixa me desculpar pelo atraso, diz que tinha acabado de chegar também.

Jaílson ainda veste as calças amarelas com faixas refletoras de luz e botas grossas, o uniforme usado na construção civil. A Copa do Mundo, decidida por engravatados em escritórios de Genebra, o transformou numa contradição ambulante: o operário mora na comunidade vizinha ao estádio, ameaçada de remoção exatamente pelas obras em que trabalha. Ele é encarregado da “armação”, passa o dia montando armações metálicas para receber concreto nos canteiros das obras viárias do futuro estádio do Corinthians e do Polo Institucional de Itaquera, colado ao estádio, que contará com uma FATEC, uma ETEC, uma biblioteca, unidades do corpo de bombeiros e da PM e um parque linear.

Idealizado na gestão de Gilberto Kassab (PSD), o projeto da prefeitura de São Paulo foi incluído nas obras da Copa e apresentado como um legado do mundial para a cidade. O prazo para a conclusão das obras, meados de 2014, angustia os moradores da Comunidade da Paz que, como Jaílson, não sabem o que será feito deles depois.

“Me bate uma tremenda revolta, cara. Acho uma tremenda falha e erro do ser humano”, ele diz de modo assertivo, direto, olhos nos olhos. A voz seca, a expressão sisuda parecem encarar o sofrimento com naturalidade. Penso em Fabiano, protagonista de Vidas Secas, acostumado a se conter diante da face dura que a vida lhe mostrou. Como o personagem de Graciliano Ramos, Jaílson se sente massacrado a ponto de duvidar de sua condição humana: “Me sinto tratado como lixo, como um animal”, resume.

Ironicamente, o terreno que hoje abriga o bar de Jaílson, na frente de sua casa, já foi um lixão. “Conforme vai adiantando aquela obra, eu vou me afastando do lugar em que eu criei os meus filhos. Pra mim não é fácil porque eu sei que quanto mais adiantar aquela obra, mais rápido eu vou ser expulso de lá. Mas tem que fazer né? Eu preciso do trabalho, preciso colocar comida na mesa para os meus filhos, não tem jeito, tem que fazer uma coisa sacrificando outra”, consola-se.

A epopeia de Jaílson da Bahia a São Paulo

Jaílson, aliás, nem é o primeiro nome dele. Seu nome completo é Cícero Jaílson Ponciano da Silva. Tem 39 anos e é baiano do município de Paulo Afonso, que fica a 460 km de Salvador e acaba de romper a barreira dos 100 mil habitantes, segundo o último censo do IBGE. O segundo nome pegou, segundo ele, desde menino.

Em 1996, aos 22 anos, Jaílson veio tentar a sorte em São Paulo como tantos conterrâneos. “No início, catei reciclagem. Normal, um serviço digno como outro qualquer, mas era uma maratona, tem que acordar muito cedo pra encher o saco, a carroça de coisas. Depois, fui trabalhar de pedreiro, melhorando a vida, conhecendo outras pessoas, conhecendo São Paulo mesmo, que eu não conhecia nada. Daí comprei esse lugarzinho aqui e mandei buscar a minha família”, relembra.

Ele estava há dois anos em São Paulo, quando nasceu na Bahia a primeira filha, Wesleane, hoje com 15 anos – a mulher, Maria José Vieira, ainda vivia lá. Ele trabalhava como pedreiro e enviava dinheiro para a família, enquanto se estabelecia na Comunidade da Paz, cujo nome oficial é Miguel Inácio Curi II. Foi o irmão, José Domingos, morador da comunidade vizinha, a Miguel Inácio Curi I, que lhe avisou que havia espaço em uma antiga área da COHAB abandonada, onde brotavam alguns barracos, perto dali. Ele construiu a casa com as próprias mãos.

“Quando eu cheguei, tinham poucos barracos e era só mato, eu sou um dos fundadores daqui”, gosta de repetir, com certo orgulho. O local é estratégico: fica a poucos metros da estação de metrô Corinthians-Itaquera, inaugurada em 1988, que também abriga um shopping e um terminal de ônibus e oferece uma boa infraestrutura pública, essencial para famílias de baixa renda. Num raio de 2,5 km há oito escolas municipais de ensino infantil, duas escolas municipais de ensino fundamental, sete escolas estaduais de ensino fundamental e médio, 12 creches, uma biblioteca, duas MOVAs (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos), quatro AMAs e uma UBS.

Leia a íntegra da reportagem no site da Agência Pública.