Dependência

Guedes quer voltar aos braços do FMI, 15 anos após Lula quitar dívida

Oportunista, medida serviria para delegar aos organismos internacionais as responsabilidades por novas medidas de arrocho fiscal a serem adotadas no futuro

Isac Nóbrega/PR
Isac Nóbrega/PR
Em vez de recorrer a organismos internacionais, emitir moeda e títulos da dívida são medidas mais racionais

São Paulo – A equipe econômica do ministro Paulo Guedes pretende tomar US$ 4,01 bilhões emprestados de organismos internacionais – entre os quais o Fundo Monetário Internacional (FMI) – para financiar despesas relacionadas à crise do coronavírus. Os recursos seriam aplicados no pagamento do auxílio emergencial, no plano de manutenção do emprego, no seguro-desemprego e, até mesmo, no Bolsa Família.

Apesar da finalidade parecer nobre, a iniciativa é vista como “irracional” do ponto de vista econômico. Já que o cenário fiscal do país é bastante diferente de 18 anos atrás, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso pediu US$ 41,75 bilhões ao FMI, em 2002.

Naquele ano, marcado pelos temores do mercado financeiro frente à possibilidade da chegada do PT ao poder, o dólar bateu em R$ 3,95, maior desvalorização do real frente à moeda americana até então. As reservas cambiais somavam apenas US$ 37,8 bilhões. Já a dívida externa totalizava US$ 165 bilhões.

Três anos depois, em 2005, a dívida com o FMI era quitada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Depois de abandonar a condição de devedor, o Brasil passou a ser credor do fundo quando, em 2009, emprestou US$ 10 bilhões para financiar auxílios diversos para países emergentes, em meio à crise financeira internacional que eclodiu um ano antes.

Reservas

De junho de 2019 para cá, o governo Bolsonaro já queimou cerca de US$ 50 bilhões das reservas internacionais. Essas divisas foram gastas em transações de swap cambial, para tentar conter a alta da moeda americana. Contudo, o Brasil ainda conta com cerca de US$ 340 bilhões em reservas. Quase 10 vezes mais do que quando recorreu ao FMI pela última vez.

Economistas sugerem a hipótese de a atual investida tratar-se de uma espécie de armadilha, para voltar a submeter o país às chamadas políticas de austeridade, impostas como condição para a tomada de empréstimo junto a organismos internacionais como o FMI. Essas medidas vão desde o congelamento de salários dos servidores públicos, privatizações, à redução no pagamento de aposentadorias e pensões. Inclusive no setor privado, o que inclusive já foi feito com a última reforma da Previdência aprovada pelo próprio governo.

Reservas cambiais do país. Fonte: Banco Central

Interesses estranhos

Para o economista André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), trata-se de uma medida no mínimo “estranha”. O valor total requerido – não apenas junto ao FMI, mas também à Agência Francesa de Desenvolvimento, ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial e o Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics, dentre outros – é praticamente irrisório.

“Seria o equivalente a ter uma montanha de dinheiro na sua conta corrente e você vai ao banco e pede mais US$ 4 bi no cheque especial”, comparou o economista. “Ainda que as taxas de juros estejam baixas, por que aumentar o endividamento, se você tem aquele dinheiro?”

Ele aponta certo oportunismo da equipe econômica em aproveitar as baixas taxas de juros internacionais em vigor, atualmente. Além da aposta de que essa dívida seria facilmente quitada, a partir de uma futura valorização do real. Outra jogada é contábil, segundo ele, para burlar a chamada Regra de Ouro. Esse dispositivo impede o governo de emitir títulos da dívida interna para o pagamento de gastos correntes, e não investimentos.

Essa ação, segundo o economista, seria para justificar a narrativa adotada desde o governo Temer, e aprofundada com Bolsonaro, de que “o dinheiro acabou”. É a lógica que serviu para justificar a aprovação do chamado Teto de Gastos e da própria “reforma” da Previdência.

A contradição dessa lógica é que, só neste ano, o governo deve registrar um déficit fiscal de cerca de R$ 800 bilhões, em função das medidas econômicas de combate à pandemia. É o equivalente ao montante que seria economizado, em 10 anos, com as mudanças no sistema previdenciário. “Isso vai colocar em risco essa ideia de que o dinheiro acabou. Se acabou, como é que conseguiram gastar tanto em um ano?”

Alternativas

Economistas e políticos têm defendido a tese de transferir parte das reservas internacionais para o Orçamento. Não é o caso de Roncaglia, que destaca a importância do acúmulo dessas reversas para combater incertezas externas e crises cambiais futuras. Contudo, ele diz que o governo não está encontrando qualquer dificuldade em emitir e negociar títulos da dívida. Outra alternativa, segundo ele, é a própria emissão de moeda.

O professor da Unifesp lembra que, de janeiro a maio deste ano, o Brasil acumulou quase de R$ 600 bilhões com ganhos cambiais das reservas, devido à desvalorização do real frente ao dólar. Um projeto de lei encaminhado do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) quer permitir acesso excepcional a estes recursos apenas enquanto durar a pandemia.

Mesmo sem tal mudança legislativa, o próprio ministro Guedes já verbalizou a intenção de usar ao menos R$ 500 bilhões dos lucros auferidos pelo Banco Central (BC). No entanto, ele também declarou, na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, que já colocou uma “granada no bolso” dos servidores públicos. Tratava-se do projeto de congelamento dos salários do setor público, aprovado pelo Congresso Nacional no mês passado.