Fim de semana foi de limpeza em São Luiz do Paraitinga

Trabalho de remoção dos escombros está apenas no início e ainda vai demorar muito para cidade voltar à normalidade

(Foto: João Peres)

O domingo (10) foi de limpeza em São Luiz do Paraitinga, a cidade do interior paulista mais castigada pelas chuvas da virada do ano. E a expectativa para esta segunda-feira (11) é a mesma. E assim será na terça, na quarta e por muitos outros dias. A rotina desta cidade Vale do Paraíba em 2010 vai exigir paciência. Tudo se resume a água, vassoura, rodo e sabão.

A recuperação das ruas afetadas pela inundação do primeiro dia do ano está longe do fim. Em alguns casos, nem começou. Em outros, começou já no dia 2, mas há tanto barro que é como se fosse este o primeiro instante depois da enchente.

O trabalho de limpeza, no caso dessa enchente, é muito mais complexo porque não se trata simplesmente de se livrar do barro. É preciso reconstruir uma cidade sob escombros. Entre as casas que podem ser salvas há muitas que perderam o telhado, o piso, algumas paredes. Há outras em que a parte interna virou nada mais que entulho.

E há aquelas em que, caprichosamente, a inundação tratou de levar o reboque das paredes, revelando em uma triste aula de história, os métodos de construção utilizados nas mais antigas moradias de São Luiz.

Há geladeiras sobre o telhado. Roupas e inúmeros objetos pendurados nas árvores às margens do Rio Paraitinga. Há tanto para se limpar que alguns lugares vão levar tempo até que se lembre deles. Ruas inteiras estão bloqueadas por montanhas de lixo.

Ou melhor, bloqueadas por aquilo que a água levou das casas: colchões, eletrodomésticos, móveis, latas de comida, objetos pessoais. Alguns se esforçam para encontrar fotos, documentos, recuperar um pedaço que seja da sua história e a da cidade. Outros conseguem, com olhar clínico, encontrar no meio dos escombros algo que possa ter alguma utilidade. Vale caneca, copo, prato, tudo o que tiver suportado a força da água.

O cheiro que emana dos montes de lixo é difícil de descrever. É uma mistura de podridão com barro que ofende os sentidos e fica incrustada nas narinas, incomodando cada vez mais.

Doações e nova vida

Indiferente ao cheiro e até achando graça da situação, a aposentada Celina Campos come uma laranja tranqüilamente. Apoiada na janela, ela admite a função de observadora da vida alheia. A casa, sem nada dentro a não ser o barro, é visitada apenas quando Celina quer ter alguma privacidade no banheiro.

Desde o começo deste ano ela vive na Escola Estadual Monsenhor Ignacio Gioia, um dos dormitórios improvisados para aqueles que não podem voltar para casa. Ela leva a situação com bom humor: “Lá (na escola) teve hambúrguer de frango ontem. E dos grandes. Agora como melhor do que em casa.”

Ela não é a única. Claro que há um enorme desconforto em dividir banheiro e quarto com dezenas de pessoas. Mas as doações foram generosas e comida realmente não falta. Há frutas e alimentos de primeira necessidade chegando de todas as partes, sem contar as “quentinhas” entregues pelas cidades vizinhas e que ajudam a alimentar policiais, bombeiros e integrantes da Defesa Civil.

A dificuldade pode vir daqui a alguns dias, talvez semanas, quando o mundo “externo” arrumar outro problema e esquecer-se da ajuda a São Luiz. A questão é que mesmo quem não perdeu a casa ou quem tem alguma reserva financeira não encontra como viver sem depender das doações.

O comércio ruiu junto com as casas. Não há supermercados nem padarias abastecidos. Andar pelas ruas daqui é simplesmente encontrar lixo pelo caminho. É uma desesperadora situação de vagar por lugares em que todos fazem a mesma coisa e encontrar o que comer é tarefa inglória.

Algum alento, só depois que se conhecem os pontos de doação. Além dos oficiais, há tendas improvisadas por voluntários, organizações sociais e instituições religiosas. Quem não perdeu a casa é orientado a pegar uma cesta básica e um botijão de gás, sem poder permanecer nos abrigos.

Na Monsenhor Ignacio Gioia estavam 57 pessoas no último domingo. Os voluntários controlam as doações e já fazem estoque prevendo dificuldades adiante. Um deles pede que os alimentos voltem a ser doados em 10 ou 20 dias. Ele aponta que a maior necessidade é de água, porque se consome muito rapidamente, e roupa masculina.”Homem não compra muita roupa e agora, na hora de doar, não tem”, explica

É fato. Há uma enorme pilha de roupas na escola, mas quase todas são de mulheres ou de crianças. Dono de uma pousada arrasada pela chuva, o voluntário vive agora com a roupa do corpo. Durante o dia, trabalha na reconstrução do próprio negócio e na limpeza da casa. No fim da tarde, ajuda a organizar os trabalhos no abrigo da escola Monsenhor. Tem dormido cinco horas por noite e dá claras mostras de cansaço, mas dá um jeito de sorrir.

Como todos têm tentado fazer por aqui. Em todo lugar que se passe, a conversa é a mesma. Como boa cidade do interior brasileiro, São Luiz tem gente conversando em toda parte. E as histórias de inundação vão aos poucos virando “causos” ao jeito caipira.

A tristeza é que, desta vez, não é preciso acrescentar detalhes para que a história seja impressionante. Além dos relatos pessoas, há a descrição dos dramas comuns. E todos tentam entender o que pode ter levado à maior inundação da história da cidade. Alguns não se convenceram com a explicação de que choveu absurdamente acima do normal.

Chuva que, ao deixar milhares de casas debaixo d’água, fez ruir o patrimônio histórico, tão importante para a cidade. A Igreja da Matriz, reduzida a pó, ainda depende de mais avaliações para saber se algo se salvou. Sabe-se apenas que a imagem de São Luís de Tolosa, padroeiro da cidade, escapou com poucos problemas, o que ajuda a reerguer a autoestima de uma população católica e adepta das tradições.

Por outro lado, o Mercado Municipal parece fechado há anos. De longe, tem-se a impressão de paredes desgastadas pela ação do tempo. Mas são apenas manchas de barro. Nas portas, as grades retêm jornais endurecidos pela lama, folhas e tudo que o rio carregou até lá, incluindo os objetos de uma loja de animais vizinha.

Do outro lado do mercado está uma galeria na qual, no último domingo, duas moças tentavam limpar um salão de cabeleireiro. Um dia não é suficiente, mesmo que o local não tenha mais que três metros de comprimento por outros tantos de largura. Dos equipamentos, nada se salvou.

Prejuízo maior teve o irmão de uma das moças. Advogado, ele perdeu as dezenas de processos que tinha nos arquivos. A sala, com um cheiro horrível, mas diferente daquele sentido do lado de fora, é um amontoado de cadeiras e mesas enlameadas. Pergunto a uma das moças se ela pretende abrir em breve o salão. “Poderia até reabrir em alguns dias. Mas vou abrir para quem?”

Aí entrará aquele que será o desafio de São Luiz quando o lixo tiver ido embora. Como reativar uma economia em que não há mais comércio ou turismo, em que não há salários, capital de giro, ninguém tem como comprar, ninguém tem nada para vender? São Luiz terá de buscar seu próprio caminho.