Defesa internacional

Brasileiros pagam com sangue por lutar contra a destruição. O mundo precisa saber

Washington Brazil Office será escritório dos movimentos sociais do Brasil nos Estados Unidos e aliado em defesa da democracia

Reprodução
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Movimentos sociais são a fronteira entre governos e empresas destruidores e a defesa dos povos, da água, da terra e da vida. E neste 2022, querem que o mundo volte os olhos para o resgate da democracia no Brasil

São Paulo – Em 1969, o deputado Márcio Moreira Alves foi a Washington, capital dos Estados Unidos, para denunciar a repressão e a tortura vivida pelos brasileiros. Apoiador do golpe que depôs João Goulart em 1964, o parlamentar tornou-se opositor do regime à medida em que este endurecia, até ser cassado pelo AI-5 em 1968. A denúncia internacional de Moreira Aves representou o primeiro “dos esforços nesse sentido”, disse o professor de História e Cultura Brasileira, James Green, sobre o Washington Brazil Office (WBO). Presidente do corpo diretivo da instituição lançada na noite desta segunda-feira (31), Green lembrou a motivação para a criação do escritório.

A decisão foi tomada em 2018, logo após a eleição de Jair Bolsonaro, num encontro de 200 ativistas e acadêmicos na Faculdade de Direito na Universidade de Colômbia. Essa Rede nos Estados Unidos pela Democracia no Brasil tem hoje 1.500 apoiadores em 45 estados norte-americanos, com a missão de conscientizar o público sobre a situação do Brasil, defender avanços sociais, políticos, econômicos e culturais. Além de apoiar movimentos sociais, organizações comunitárias, ONGs e ativistas vulneráveis no atual contexto político brasileiro.

“O lançamento oficial do WBO marca um passo histórico no esforço de ter uma presença permanente em Washington que possa avançar uma política a favor das forças democráticas no Brasil. E tornar-se um veículo de articulação dos programas e demandas dos movimentos sociais brasileiros em defesa da democracia, justiça social, econômica e ambiental”, disse James Green.

Garantir a vida

Não por acaso, o ato de lançamento do WBO reuniu e deu voz a representantes de seis dos principais movimentos sociais brasileiros. Sonia Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib); Izadora Brito, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST); Ana Chã, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Soniamara Maranho, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Carolina Pasquali, do Greenpeace Brasil; e Biko Rodrigues, da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq).

Guajajara é também embaixadora do WBO, ao lado de artistas como Wagner Moura, Gregório Duvivier e Daniela Mercury e do professor e jornalista Jean Wyllys. Ela falou sobre a importância dessa conexão entre os diferentes movimentos em torno da WBO. “Para garantir nosso futuro. Precisamos estar juntos para enfrentar o racismo, o fascismo, o machismo e principalmente todas essas estruturas instaladas para nos destruir”, afirmou, citando empresas multinacionais a serviço do agronegócio, da mineração, do garimpo, da indústria madeireira. “E que vem a todo custo assediando nosso povo, enganando nossa gente.”

A indígena destacou a importância de combater a narrativa de que o ambiente precisa ser explorado para melhorar a vida das pessoas. “O meio ambiente precisa ser preservado, nossos territórios precisam ser garantidos, e entregue aos nossos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, à população tradicional, para que possamos garantir não só nossa vida, mas a vida no planeta.”

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Movimentos de comunidades originárias fortalecem luta interna com denúncias internacionais

Voz aos excluídos

A representante do MTST classificou o cenário atual no Brasil. “Costumo dizer que nem nos piores pesadelos a gente imaginaria viver o que está vivendo hoje. Cenário de miséria, com mais de 19 milhões de pessoas passando fome no país. Um cenário de censura, repressão às liberdades individuais e coletivas, perseguição aos negros, indígenas, mulheres, LGBTs. A solidariedade internacional é mais do que necessária.”

Izadora Brito ressaltou o ano eleitoral. “A gente não pode mais sofrer golpes e atentados à democracia como a gente vem sofrendo. Precisamos estar alertas e vigilantes.”

Ana Chã comentou, pelo MST, sobre a inspiração dos homenageados da noite, que precederam a todos na luta pela democracia no Brasil: Abdias do Nascimento, Augusto Boal, Chico Mendes, Paulo Freire, Zuzu Angel. “A gente olha, sente sua força e se sente inspirado e guiado pela trajetória de luta. Em especial pela trajetória de solidariedade, de levar a palavra dos excluídos no Brasil para o mundo. Que essa voz se faça ouvir como denúncia e também como anúncio. Como um projeto que os indígenas, quilombolas, sem terra, atingidos por barragens, ambientalistas, têm para o país.”

A dirigente destacou ainda a importância do trabalho já feito e os resultados. “Em especial depois do golpe a gente viu como foi importante todo esse trabalho de articulação, de denúncia, de pressão nos Estados Unidos que a gente sabe que contribuiu bastante para o golpe no Brasil.”

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Comunidade quilombola de Alcântara (MA) assegurou direitos com resistência e apoio externo

Fronteira contra a destruição

Biko Rodrigues saudou as mais de 6 mil comunidades quilombolas no Brasil e os 10 milhões de brasileiros que sofrem com os retrocessos promovidos pela regularização fundiária do governo de Jair Bolsonaro. “Nós somos a fronteira que impede o agro, o minério, o hidronegócio de destruir toda a biodiversidade que existe no campo brasileiro. E temos pago preço muito caro com relação a isso, inclusive com a morte e o sangue dos nossos companheiros e companheiras.”

O quilombola agradeceu a parceria com o WBO por levar essa voz a outras partes do mundo. E lembrou a atuação de advocacy no parlamento americano com relação a Alcântara, no Maranhão. “Foi importantíssimo. Mais de 200 comunidades quilombolas iam ser despejadas devido a todo processo forçado da implementação da Base Espacial de Alcântara. Essa articulação internacional é muito importante.”

Advocacy é uma das práticas políticas realizadas pela Rede Democracia e pela WBO junto às instituições do sistema político norte-americano. O objetivo é influenciar a formulação de políticas e a alocação de recursos públicos.

O líder quilombola criticou as violações de direitos no Brasil. “Quem mais incita o ódio vem a própria cadeira presidencial”, disse, criticando Bolsonaro, a quem chamou de “vírus”. E alertou: “não há democracia enquanto existir racismo no país. Não dá para cada 23 minutos um jovem negro ser assassinado violentamente no país.”

Brasil estratégico

Soniamara Maranho considerou a importância do olhar internacional sobre a democracia. “Isso nos traz as diversas experiências que construímos historicamente como humanidade. E a contrademocracia que vem de uma disputa internacional. Principalmente a geopolítica. É discutir nosso projeto de vida.”

Para a integrante do MAB, o debate se dá em torno de países estratégicos, como o Brasil, de alta lucratividade, que têm bens naturais, na lógica da disputa pelos capitalistas. “Isso coloca em risco a nossa democracia. É importante essa afirmação para entender a tarefa de vocês como escritório e a nossa como movimentos sociais.”

Ela lembra os crimes da mineração no Brasil que mataram 292 pessoas entre 2015 e 2019. “Eles sabiam que iam romper, estava comprovado por vários órgãos. Como a gente consegue fazer com que essa democracia faça com que os culpados paguem por esses crimes?”, questionou. “Essas articulações internacionais que vocês nos ajudam a construir, ajudam a dialogar, porque nossa luta é internacionalista”, disse falando em um sonho democrático. “A democratização dos meios de produção, para todos os povos do mundo. Esta é a nossa tarefa.”

Pelo Greenpeace Brasil, Carolina Pasquali salientou o cenário de constante ameaça aos movimentos sociais e às organizações da sociedade civil. “Com o projeto em curso para criminalização daqueles que ousam se expressar e discordar do atual modelo de destruição vigente no nosso país, infelizmente.” Ela lembrou a redução, pelo governo Boslonaro, dos espaços de participação social em conselhos e comitês. “Dados do Cebrap mostram que 75% dos comitês e conselhos foram esvaziados pelo governo federal nos últimos anos. Aconteceu no Conama, o Conselho Nacional do Meio Ambiente: em 2019 reduziu as vagas para a sociedade civil, de 23 para quatro”, denunciou. 

Atingidos por crimes da Vale até hoje se organizam por justiça contra a lama da destruição em Mariana (MG)

Eixos de atuação

A primeira atividade oficial do Washington Brazil Office será a instalação de um Observatório da Democracia que acompanhará as eleições presidenciais. Ao longo do ano, produzirá boletins semanais e podcasts quinzenais em inglês com análises eleitorais dirigidas ao público internacional. Além de debates programáticos mensais com especialistas dos dois países sobre temas paralelos e de interesse comum.

O jurista Paulo Abrão, secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA), é outro brasileiro à frente da diretoria executiva de WBO. Foi Abrão quem apresentou os eixos principais de atuação do escritório. “O primeiro, como programa fundamental, Democracia, Direitos Humanos e Liberdade de Expressão. O segundo sobre Amazônia, Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. O terceiro sobre Igualdade Racial e Superação do Racismo. O quarto sobre Gênero e Diversidade Sexual. O quinto trata do Fortalecimento do Espaço Físico e Proteção a Líderes Sociais, Sindicais, Ambientais, Indígenas e Jornalistas. O sexto eixo sobre Desenvolvimento Socioeconômico e Agenda 2030.” Tudo isso, destacou, com parceiros brasileiros que já atuam em defesa da democracia brasileira.    

25 organizações sociais

Iman, diretora de Advocacy, destacou a importância desse trabalho e como ele se amplificou no sentido de ampliar internacionalmente as vozes da sociedade civil brasileira. “Muito pouco se falava sobre o Brasil dentro do Congresso Americano. Nosso trabalho vem alertando parlamentares sobre a realidade brasileira, em especial sobre as grandes ameaças antidemocráticas nos últimos meses.” Isso, avalia ela, levou a um número recorde de ações e manifestações dos congressistas a favor da sociedade brasileira.

A organização presidida por James Green é composta por professores e professoras estadunidenses das Universidades de Harvard, New York University, Columbia, Brown, California, Georgetown, Wisconsin e Pensilvania. O escritório nasce com 25 organizações sociais inicialmente afiliadas e que compõem o seu Conselho Consultivo: Greenpeace Brasil, Instituto Sou da Paz, Ação da Cidadania, Artigo 19, MTST, MST, APIB, MAB, 342Artes, Instituto Marielle Franco, Instituto Vladimir Herzog, Uneafro, ABGLT, MNDH, CNS, Coletivo Memória Verdade e Justiça, Instituto Cidade Segura, Instituto Novos Paradigmas, Associação Brasileira de Relações Internacionais, Centro de DH Dom Helder Camara, Instituto de Referência Negra Peregum, Bem-Te-Vi Diversidade, MJDH e USNDB.