Apurações anteriores e nomeações corretas são pontos essencias para Comissão da Verdade

São Paulo – A utilização de investigações conduzidas por outros colegiados e a nomeação de integrantes que tenham uma trajetória de respeito aos direitos humanos são entendidas como os segredos […]

São Paulo – A utilização de investigações conduzidas por outros colegiados e a nomeação de integrantes que tenham uma trajetória de respeito aos direitos humanos são entendidas como os segredos para um funcionamento eficiente e correto da Comissão da Verdade, cuja criação foi sancionada nesta sexta-feira (18) pela presidenta Dilma Rousseff.

Como tem recordado o governo federal, o colegiado incumbido de apurar violações cometidas por agentes do Estado, com ênfase na ditadura, “não parte do zero”, ou seja, pode se valer dos trabalhos realizados pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada em 1995, e pela Comissão de Anistia, aberta em 2001. Para cumprir os respectivos objetivos de reconhecimento das mortes e de reconhecimento dos direitos a indenização, esses grupos promoveram investigações para comprovar a veracidade de certas informações. 

“Já foram abertos muitos arquivos, sobretudo na comparação com outros países da América Latina. Naturalmente, faltam os arquivos mais importantes, que são os das Forças Armadas”, avalia Glenda Mezarobba, professora da Universidade Estadual de Campinas e integrante do grupo que elaborou o anteprojeto para a criação do colegiado. “A Comissão da Verdade é o espaço para as vítimas poderem contar as suas verdades, e a partir daí construir ou reconstituir a história do período.”

Há, porém, a ressalva de que a interpretação de que a Lei de Anistia veda apurações que revelem a identidade de repressores impediu algumas apurações dessas comissões. Além delas, há dois trabalhos considerados importantes para alimentar a Comissão da Verdade, que terá prazo de dois anos para investigar os fatos ocorridos entre 1946 e 1988, intervalo entre duas constituições democráticas. 

O primeiro é o relatório Brasil Nunca Mais, fruto de trabalho que reuniu, entre 1979 e 1985, os processos levados ao Superior Tribunal Militar contra militantes políticos no período de 1964 a 1979, datas do golpe contra o presidente João Goulart e da promulgação da Lei de Anistia. O arquivo reunido por advogados, de mais de um milhão de páginas, representa a maior parte das ações levadas à máxima instância no período autoritário e tem a vantagem de ter origem em uma fonte oficial. O segundo documento é o livro “Direito à memória e à verdade”, elaborado em 2007, levando em conta os relatórios da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos. Além de reconstituir muitos dos crimes, trata-se do primeiro reconhecimento oficial do Estado brasileiro sobre as violações cometidas por seus agentes durante a ditadura.

Marco Antônio Rodrigues Barbosa, presidente da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, lembrou durante a sanção da lei que cria a Comissão da Verdade que foi montado pelo grupo um banco de dados genéticos de parentes de vítimas que ajuda na identificação de corpos localizados em valas clandestinas. 

Na mesma cerimônia foi sancionada a Lei de Acesso a Informações Públicas, que vai, entre outras coisas, acabar com a possibilidade de sigilo eterno sobre documentos classificados pela Presidência da República como “ultra-sigilosos”. Uma das possibilidades que se abrem é a de que venham à tona revelações sobre a conduta dos militares durante o regime autoritário, ainda que representantes das Forças Armadas garantam que seus arquivos foram completamente destruídos. “Estamos diante de um fato histórico. Sem revanchismo, acontece a sanção do projeto de acesso a informações, previsto na Constituição de 1988”, pontuou Barbosa. “A Comissão da Verdade, que não pode prescindir do acesso à informação, é um passo fundamental.” 

Nilmário Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo e ministro da Secretaria de Direitos Humanos no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-06), defende que a criação da Comissão da Verdade é o terceiro passo na redemocratização do Brasil. Os dois anteriores, em sua visão, são a aprovação da Lei de Anistia e a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988. Em entrevista à emissora de televisão NBR, do governo federal, ele pontuou que é a primeira vez que se terá a oportunidade de passar a limpo o período “que causou enormes prejuízos”. O ex-ministro advertiu mais uma vez que não se trata de vingança ou revanchismo, como dizem críticos do colegiado. “Não é para cutucar o passado. É para conhecê-lo e evitar que os erros se repitam no futuro.”

A gestão de Dilma Rousseff tem dito que não há prazo para que a Comissão da Verdade comece a operar. Especula-se que a presidenta vá aproveitar a data de 10 de dezembro, Dia Mundial dos Direitos Humanos, para anunciar a lista de sete integrantes do colegiado. Organizações ligadas a familiares de vítimas e à defesa da dignidade humana têm pressionado para que sejam escolhidas pessoas com histórico de atuação no setor, evitando nomeações que atendam a interesses políticos ou corporativos. A lei que cria o grupo proíbe a atuação de dirigentes partidários e de pessoas que “não tenham condições de atuar com imparcialidade”, o que, na teoria, exclui a possibilidade de indicação de integrantes das Forças Armadas, embora parentes de vítimas entendam que essa possibilidade não fica vetada pelo texto.

Glenda Mezarobba aponta que este é o grande segredo para o bom funcionamento da apuração. Especialista em Justiça de Transição, ela acredita que não importa a origem política do integrante, se de direita ou de esquerda, desde que tenha uma trajetória de respeito e de promoção dos direitos humanos. “Uma Comissão da Verdade, e a experiência de outros países mostra isso, não funciona quando você coloca representantes. Representante do setor X, das vítimas, das Forças Armadas. A Comissão não deve ser pensada em termos de representação”, defende. 

Após a indicação dos integrantes, eles deverão se reunir para elaborar um regulamento interno e solicitar a montagem de uma estrutura de trabalho. Para auxiliar na apuração poderão ser montadas parcerias com instituições de ensino superior ou organismos internacionais. Além disso, a Comissão da Verdade tem o direito de solicitar acesso a qualquer documento público, mesmo os que ainda estejam protegidos sob classificação de sigilo. Ao final, o relatório elaborado poderá ser utilizado pelo Ministério Público Federal para a elaboração de ações que visem à punição de repressores.