Trotes machistas reproduzem lógica violenta, dizem especialistas

Atitude de alunos que hostilizaram grupo feminista na USP de São Carlos foi rechaçada por movimentos e provocou mobilização

São Paulo – Uma mobilização contra trotes machistas tomou conta das redes sociais e dos debates de movimentos feministas e de especialistas, depois do episódio ocorrido na semana passada no campus da USP em São Carlos, interior de São Paulo.

No último dia 26 de fevereiro, protesto de um grupo feminista contra o “Miss Bixete” terminou em gritos, nudez e hostilidade. O “Miss Bixete” é um concurso de beleza entre calouras organizado pelo Grupo de Apoio à Putaria (GAP), grupo do Centro Acadêmico Armando de Salles Oliveira (Caaso). O concurso ocorre dentro do campus e teria como objetivo eleger a caloura mais bonita.

Desde 2005, o Coletivo de Mulheres do Caaso organiza protestos contra o concurso, por considerá-lo machista e opressor. “Esse tipo de evento vai contra a diversidade, coloca sempre um padrão de menina, de beleza, sempre subordinado aos homens”, explica Maria Júlia Monteiro, da Marcha Mundial das Mulheres. Segundo a Frente Feminista da USP, que este ano participou da organização do protesto, as brincadeiras são “simbolicamente agressivas”, além de consideradas “por muitos como pejorativas”.

Enquanto as meninas desfilam, os chamados “veteranos”, pessoas que já estão há mais de um ano na universidade, cantam palavras de ordem como “peitão, bundão”, estimulando-as a erguerem a blusa e dançarem. Já na “competição do picolé”, as calouras recebem um picolé e têm de chupá-lo simulando sexo oral. Quem terminar o sorvete primeiro, ganha. A frente afirma também que, embora não tenha ocorrido em 2013, nos últimos anos uma prostituta era contratada para mostrar os seios, incentivando as calouras a fazerem o mesmo.

Neste ano, membros do GAP se irritaram com os protestos contra o concurso e hostilizaram as manifestantes. Copos de cerveja foram lançados contra elas, cartazes foram rasgados, e alguns meninos simularam fazer sexo com uma boneca inflável diante do protesto.

O Coletivo de Mulheres afirmou, em nota, que o protesto foi pacífico, com “batucadas, músicas e cartazes questionadores”, e as manifestantes sofreram todo o tipo de “agressão verbal e simbólica”. Segundo o Coletivo, um dos estudantes do GAP abaixou as calças e gritou que seu objetivo em ficar nu era “corrigir esse bando de sapatão e viado”.

Em nota, a USP de São Carlos informou que a “universidade é veementemente contra qualquer ação que cause constrangimento”, e que o “Miss Bixete” não faz parte da Semana de Recepção aos Calouros, promovida pelas unidades do campus. A universidade afirmou que os dirigentes do campus já tomaram providências para identificar os envolvidos no “lamentável evento”, para, posteriormente, abrir um processo administrativo contra eles.

A nota reforçou a existência do Dique Trote (0800 012 10 90), pelo qual os alunos podem denunciar agressões e outras ocorrências. 

Para a professora do departamento de Antropologia da USP e especialista em estudos de gênero, Heloísa Buarque de Almeida, a existência em si do “Disque Trote” já prova que trotes violentos são parte da rotina anual da universidade. “Se existe algo assim é porque há problemas, desde antes deste episódio de 2013.”

Ela ressalta que o “Miss Bixete” é não pode ser considerado como brincadeira, mas sim como violência. “Um trote no qual as meninas se sentem obrigadas a fazer coisas humilhantes e que as coloca como objeto sexual é um algo machista, misógino e violento”. 

A militante da Marcha Mundial lembra que, mesmo que os organizadores não obriguem ninguém a participar, o clima de entrada na universidade promove, muitas vezes, pressão sobre os calouros a realizarem algumas tarefas.

“Há uma hierarquia entre veteranos e calouros em que o veterano fala e o calouro faz. Ele [calouro] quer ser aceito, fica esse terror de se você não participar do trote você não faz amigos, você é careta, o que é uma grande mentira. As pessoas ficam anos na faculdade, haverá bastante tempo para fazer amigos.”

A participação das próprias mulheres no trote é destacada por ela. “Elas não são culpadas pelo machismo, longe disso, mas acabam reproduzindo determinadas relações e não deixam de ser oprimidas por isso. Já ouvimos meninas dizerem que tem vergonha e medo de dizer que não querem participar.”

Cultura do estupro

Os movimentos e especialistas lembram da tolerância e até da incitação do estupro na sociedade, que põe a vítima como culpada pelo assédio. “Há uma simbologia dentro da sociedade que justifica o estupro e ainda o incita”, explica Maria Júlia. “A cultura não envolve só o estupro, mas o assédio sexual, envolve o homem achar que pode mexer com a mulher na rua ou passar a mão nela. É pensar que a mulher está disponível e que ele tem acesso livre a ela”, explica.

A professora afirma que a cultura do estupro se reproduz “toda vez que uma vítima é mal atendida na delegacia, cada vez que alguém imagina que ela é culpada porque estava de minissaia ou algo assim”. “Assim negamos o fato de que estupro é violência. Mais do que isso, negamos o direito mínimo de integridade”, diz.

O recente caso da banda de pagode New Hit, acusada de estuprar coletivamente duas fãs que foram recebidas no ônibus da banda, em Ruy Barbosa, na Bahia, em setembro do ano passado, é lembrado pela professora como um caso de descaso com o crime de estupro.

Os integrantes da banda tiveram seus interrogatórios adiados depois que seus advogados alegaram que todas as testemunhas deveriam ser ouvidas antes dos réus. Eles ficaram presos 38 dias e foram soltos no dia 3 de outubro mediante um pedido de habeas corpus.

Dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) mostram que o Disque 180, serviço que funciona como uma ouvidoria para mulheres que sofrem algum tipo de violência, recebeu, de janeiro a outubro de 2011, 530.542 ligações. São Paulo é o estado líder do ranking nacional, com um terço dos atendimentos (77.189).

A SPM, em nota divulgada na segunda-feira (4), expressou seu apoio “às feministas e manifestantes agredidas e agredidos no episódio do trote na USP de São Carlos”, e ainda afirmou repudiar atos como este, “ainda mais pelo fato de ter ocorrido numa universidade”.

Só brincadeira

Uma paródia do livro “Cinquenta Tons de Cinza” foi distribuída durante o “Miss Bixete”. O panfleto dizia “Cinquenta Golpes de Cinta – A cura para o fogo no rabo dessa mulherada mal comida”. Para Maria Júlia, da Marcha Mundial, a paródia não é uma simples brincadeira. “Tem aí o incentivo contra a mulher, principalmente aquela tida como a mal comida, que é justamente a feminista.”

O estereótipo da feminista feia, “mal comida” e que não gosta de homem é uma imagem promovida fortemente pela mídia no Brasil na década de 1980, explica a antropóloga da USP. “O mesmo machismo que acha que a jovem que recém entrou na faculdade deve fazer um ‘ritual’ de simular sexo oral para riso e escárnio de seus colegas é aquele que acha que feminista é uma bruxa idiota que não tem prazer.”

O discurso do humor que justifica atividades como o concurso de beleza em São Carlos como “apenas brincadeiras” servem de disfarce para a discriminação, de acordo com Maria Júlia. “Falam que os protestos são politicamente corretos, mas na verdade estas pessoas reproduzem o discurso de objetificação da mulher, o discurso de violência. São pessoas que sabem o que fizeram de errado e não querem arcar com as consequências”, explica.

Facebook

Uma página de evento chamada “Boicote às Festas da Poli USP” foi criada no Facebook no início desta semana. A razão é a lista de atividades programadas do IntegraPoli, gincana organizada pelos alunos da Escola Politécnica da USP no começo do ano letivo como forma de recepção aos calouros.

A lista foi elaborada com ajuda do Grêmio Politécnico, e entre as tarefas estavam “construir metralhadora de elásticos a ser testada em um bixete de biquíni a vivo” e produzir um vídeo em que meninos surpreendessem mulheres ejaculando nelas.

Depois da mobilização nas redes sociais e revolta por parte da comunidade da USP, a diretoria da unidade se reuniu ontem (5) com integrantes do Grêmio Politécnico para discutir e alterar os itens do evento considerados problemáticos. A lista foi editada e agora uma nova versão circula na internet. O evento, até às 13h30 de hoje (6) contava com mais de 2.200 adesões.