Segurança Cidadã

Território de Paz muda bairro ao aliar segurança e cidadania em Canoas (RS)

Projeto é parte do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), que vem sendo abandonado pelo governo federal, após cinco anos da implementação

Os jovens Fabrício (esquerda) e Osvaldo frequentam o estúdio da Casa das Juventudes diariamente <span>(Carlos Macedo)</span>O Guajuviras tem cerca de 45 mil moradores, sendo 20 mil nos prédios da ocupação original <span>(Carlos Macedo)</span>MC Ruan nasceu uma ano após a ocupação dos prédios e cresceu junto com o Guajuviras <span>(Carlos Macedo)</span>O totem na entrada do bairro nunca foi pichado. À direita, a Agência da Boa Notícia do bairro <span>(Carlos Macedo)</span>Marisa se tornou colaboradora  da Justiça Comunitária depois de utilizar os serviços e ter seu problema resolvido <span>(Carlos Macedo)</span>A Mulher da Paz Tânia Cunha sente orgulho de fazer parte das melhorias no Guajuviras <span>(Carlos Macedo)</span>Os prédios ocupados em 1987 mantém a mesma fachada de 25 anos atrás e abrigam cerca de 20 mil pessoas <span>(Carlos Macedo)</span>O estúdio da Casa das Juventudes atende quase 200 grupos por mês gratuitamente <span>(Carlos Macedo)</span>Oficinas e cursos são realizados na Casa das Juventudes, com jovens entre 12 e 24 anos <span>(Carlos Macedo)</span>

São Paulo – Mudar a realidade de segurança pública de uma comunidade a partir de ações sociais que valorizem a cidadania. Com este princípio, a implementação do projeto Território de Paz, no bairro Guajuviras, em Canoas (RS), vem mudando a vida dos moradores nos últimos quatro anos. Com uma queda de 53,6% nos homicídios, em uma região que chegou a ser chamada de “Bagdá gaúcha”, e várias ações sociais com jovens e mulheres, o local é uma demonstração de que o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) é um avanço no enfrentamento da violência urbana.

“O Guajuviras é onde escolhi criar meus quatro filhos, onde tenho três netos. Um deles vai fazer 13 anos. É uma idade complicada. Mas hoje eu sei que ele vai para escola e não vai ter tiroteio em pleno horário de escola, como já aconteceu. Hoje, eu sinto paz na rua. Com os projetos, com o trabalho de todo mundo. O Guajuviras tem uma liderança muito forte, é exemplo para outros lugares e até países. Nós estamos bem melhor”. O relato simples e orgulhoso é de Tânia Cunha, moradora do bairro há 26 anos, que viu o Guajuviras nascer, crescer, desandar e melhorar. Ela é uma das 107 Mulheres da Paz que atuam no local.

Tânia é parte da história do Guajuviras. O bairro surgiu da ocupação, por milhares de famílias, dos 5.924 apartamentos semiconcluídos do que viria a ser o conjunto habitacional Ildo Meneghetti, em 17 de abril de 1987. As moradias estavam sendo construídas pela Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab) havia 20 anos e estavam em situação de abandono, relata Tânia. Não havia asfalto, água encanada ou rede elétrica na região. “Foi uma luta tremenda, mas a comunidade se organizou e foi, aos poucos, conquistando as coisas que precisava. Nem tudo o que necessitava, mas foi avançando”, relata.

Como muitos bairros pobres de periferia, os moradores do Guajuviras conviviam com situações de violência, que se não podem ser consideradas normais, estão no cotidiano de muitas famílias ainda hoje. No entanto, na metade dos anos 1990 se iniciou um novo processo de ocupação no bairro, nas áreas verdes próximas aos prédios. Com milhares de novas famílias, a falta de estrutura e de equipamentos públicos, que já era sentida pelos moradores, complicou muito as condições de vida no bairro.

Depois disso a violência cresceu de forma exponencial, até atingir o índice de 70 homicídios para cada 100 mil habitantes, em 2009. A população de Canoas é de aproximadamente 45 mil habitantes, e 40% dela é formada por jovens entre 12 e 24 anos, que eram também as maiores vítimas e protagonistas da situação. A Organização das Nações Unidas (ONU) considera tolerável o índice de dez mortes para cada 100 mil habitantes. A taxa do Guajuviras era comparável à média do Iraque em guerra: 67 por 100 mil.

Tânia explica como foi esse segundo momento. “Depois da ocupação, todo mundo se acomodou, foram vivendo suas vidas. Foi quando a violência se instalou. A violência e o tráfico de drogas estavam tomando conta, distribuindo cinco ou seis mortes em uma noite. Ninguém respeitava mais nada. Baixou o valor das casas, ninguém queria morar no Guajuviras. Tinha pessoas que iam embora porque achavam que não ia melhorar, não tinham mais perspectiva.

O educador social Arnaldo Lima Cândido, o MC Ruan, que nasceu e cresceu no bairro, pode ser considerado um sobrevivente da época em que se contavam até oito assassinatos por noite no bairro. “Eu lembro muito bem do período de violência. Perdi dois primos e alguns amigos no tempo mais violento do Guajuviras. As pessoas tinham receio de sair pra rua. O tráfico era muito forte na comunidade. E o ambiente foi ficando cada vez mais pesado, cada vez mais difícil de se resolver”, explica.

Para o MC, a falta de equipamentos públicos em geral, e em especial para a juventude, facilitou a apropriação do bairro pelo crime. “Não tinha possibilidades para a juventude aprender ou expressar manifestações culturais, por exemplo. Mas o crime e o tráfico conseguiram se desenvolver muito bem, aproveitando a situação de abandono do bairro pelo poder público”, afirma. Para ilustrar a gravidade da situação, MC Ruan lembra que quando faltava luz durante a noite não adiantava telefonar para a emergência; as equipes da companhia só vinham restabelecer a energia na manhã seguinte.

Caminhando pelas ruas do bairro em junho deste ano, a intensa movimentação de pessoas, a grande quantidade de lojas, inclusive um mercado que funciona 24 horas, o número de jovens indo para lá e para cá, em nada refletem o temor da violência que se comenta sobre o passado recente do Guajuviras. Em nenhum lugar foi perceptível a insegurança de um bairro que chegou a ser comparado com um país em guerra.

O MC Fabrício da Silva Aires, de 19 anos, demonstra empolgação ao falar da situação do Guajuviras. “Isso aqui é incrível. Foi uma renovação tanto para nós, como para a cidade de Canoas. A minha relação com a cultura hip-hop começou na Casa das Juventudes. Antes não tinha lugares para a gente desenvolver as nossas rimas e músicas”, afirma.

Os ventos começaram a mudar em 2008, com o estabelecimento de convênio com o governo federal para instalação de um Território de Paz no Guajuviras, através do Pronasci. O projeto Território de Paz se iniciou mesmo em 2009, com a instalação do Gabinete de Gestão Integrada Municipal e do Observatório de Segurança Pública de Canoas. O gabinete integra as forças de segurança municipais — Guarda Civil Metropolitana, e estaduais — polícias Civil, Militar e Bombeiros, em um mesmo grupo de trabalho.

Segundo o secretário da Segurança Pública de Canoas, Guilherme Pacífico, a formação do gabinete representa um avanço na atuação em segurança no país. “Este gabinete é um fórum de autoridades, sentamos juntos, fazemos um diagnóstico dos nosso problemas e lá definimos nossas ações, a estratégia de combate à violência”, explica Pacífico. Junto a isso, o território recebeu 32 núcleos de policia comunitária. Outros onze foram instaladas pela cidade. Esses policiais participaram dos cursos de formação de policiamento cidadão e direitos humanos do Pronasci, além de receberem incentivos financeiros para atuação no local.

O perímetro definido como Território de Paz recebeu um sistema de videomonitoramento com 214 câmeras. Foram feitas várias ações de repressão ao crime, similares às ocorridas nas comunidades em pacificação no Rio de Janeiro, com prisões e apreensões de armas e drogas, antes da instalação dos equipamentos sociais. Também foram distribuídos 44 sensores sonoros para captação de disparo de arma de fogo, que acionam a polícia sem necessidade de que uma pessoa ligue para a central 190.

As ações subsequentes foram a instalação dos projetos Mulheres da Paz e o Protejo. No primeiro as moradoras da comunidade receberam capacitação para avaliar e atuar no enfrentamento à violência contra a mulher e em situações de risco social com adolescentes. A partir da identificação destes últimos, elas encaminham os jovens para o Protejo, que envolve formação cultural e cidadã em centros especiais, dotados de estúdio de música, telecentros, cineclube e espaços para realização de oficinas e cursos variados. Os participantes recebem uma bolsa-auxílio de R$ 100. Em quatro anos, 400 jovens passaram pelo Protejo.

Nos dois primeiros anos de execução do projeto, foram investidos R$ 9 milhões no bairro Guajuviras. Até 2012, já com a manutenção dos programas em atividade, o total aplicado chegou a R$ 14,4 milhões. Porém, os recursos do Pronasci para Canoas se encerraram no fim de 2011. Mesmo assim a prefeitura decidiu dar sequência aos projetos, reformulando a gestão e reduzindo as equipes do coordenação para poder continuar executando as ações.

O prefeito de Canoas, Jairo Jorge (PT), justifica a continuidade do projeto por sua efetividade no combate à violência na cidade. “O Território de Paz marcou um novo capítulo na história da política de segurança. Era uma área de violência muito severa. Afetava a autoestima das pessoas. Elas estavam intimidadas. Hoje vemos um povo altivo, que está produzindo muito em cultura, que está nas ruas tomando nas mãos o destino de sua comunidade”, avalia.

O enxugamento dos recursos para Canoas, e da execução do Pronasci em geral, é o dado concreto da perda de prioridade de um programa de prevenção pela Justiça, que vem investindo mais em construção e manutenção de presídios e combate à drogas, que são ações de caráter repressivo. O programa tinha 94 iniciativas nos diversos eixos de ação, desde formação policial até enfrentamento da violência contra a mulher e formação cidadã para jovens. Especialistas em segurança pública ouvidos pela RBA criticaram essa inversão, que consideram uma mudança de rumo do governo federal no trato da segurança pública.

A casa que abrigava o Protejo continua executando as ações do projeto, agora sem a bolsa-auxílio, e a casa que atende os jovens recebeu o nome de Casa das Juventudes. A casa tem três telecentros com computadores de uso liberado para a comunidade e realiza oficinas variadas sobre violão, funk, teatro, dança, informática e reforço escolar. O espaço atende cerca de 120 jovens por mês. O estúdio musical, para ensaio e gravação, atende a aproximadamente 200 grupos por mês, gratuitamente.

Os jovens inseridos nesse processo podem integrar também o Geração Consciente, que realiza fiscalizações simbólicas em estabelecimentos comerciais e dá orientação à população sobre direitos do consumidor. O projeto formou 63 jovens, que realizaram várias palestras e ações em comércios do bairro e na cidade.

Outra ação com a juventude é a Agência Boa Notícia, que forma jornalistas cidadãos para produzir vídeos, áudios, boletins e fotos. Embora seja um aprendizado técnico, 212 jovens entre 12 e 24 anos participaram do projeto, iniciado em 2010. A agência possui uma sede própria, instalada na entrada do bairro. Todas essas ações foram iniciadas com o Pronasci.

O rapper Osvaldo Lara, de 22 anos, do grupo Fato Verídico, afirma que a casa foi fundamental para ele desenvolver suas habilidades musicais. “Sem este espaço não existiria grupo, não teríamos condições de fazer o que acreditamos, que é cantar e passar nossa mensagem para as pessoas”, disse. Lara avalia que o bairro melhorou muito. “É uma grande diferença. A gente não podia sair de noite na rua. Hoje eu posso andar tranquilo, mesmo durante a madrugada que não é mais um lugar tão violento. Gravamos até um clipe do nosso grupo durante à noite, fazemos shows de funk e rap”, afirma.

Entre as Mulheres da Paz se desenvolveu um amplo programa de informação, capacitação, atendimento e proteção de mulheres vítimas de violência doméstica. Elas são preparadas em cursos de formação realizados pela Secretaria de Segurança Pública, que duram seis meses. Depois disso, organizam palestras, panfletagens e campanhas contra a violência.

O coordenador de projetos e políticas de gênero da secretaria de segurança de Canoas, Diego Dresch, que por conta da redução nas finanças coordena a maior parte das ações atuais, explica o foco das ações em jovens e mulheres. “O Mulheres da Paz é fundamental para identificar quais são essas juventudes que devem ser priorizadas pelo programa. Elas são mães ou tias ou avós de jovens ou de amigos deles”, explica. Localizando os jovens, o programa atua em diversas áreas, com o objetivo de “abrir o leque de oportunidades para que o jovem possa escolher e mudar a realidade de que quase 94% das pessoas que morrem no nosso município estão nessa faixa etária”.

Para Tânia, o projeto deu apoio para agir em algo que já estava no sangue. “Eu ficava olhando o que poderia ser feito a mais. Via eles batendo em suas esposas. A gente falava “não bate” ou levava a mulher para a minha casa, mas não sabia o que fazer depois daquilo. Com a formação e capacitação que tivemos aqui, aprendemos que havia várias maneiras de poder ajudar”, explica. Além disso, Canoas tem uma equipe policial da Brigada Militar especializada em acompanhar mulheres vítimas de violência e um espaço de acolhida emergencial para abriga-las.

Outro projeto existente no Território de Paz Guajuviras é a justiça comunitária. Neste espaço a proposta é mediar os conflitos entre vizinhos e familiares, buscando uma solução consensual. E evitando que caso tenha uma resolução violenta. São 73 agentes comunitários formados em cursos ministrados pela prefeitura de Canoas, desde 2010, que contam com apoio de advogados, psicólogos e assistentes sociais. Os agentes recebem uma bolsa-auxílio de R$ 120, para atuar 12 horas por semana. O espaço realiza uma média de 180 atendimentos mensais.

A colaboradora da justiça comunitária Marisa Elisabeth Anger foi atendida pelo serviço em uma questão familiar antes de se interessar pelo projeto. E acredita que a conciliação fez toda a diferença. “Foi muito importante para mim. Não sei como poderia ter resolvido minha situação sem o apoio do pessoal daqui. Muitas pessoas não sabem como, ou não têm condições de ir à justiça. Fiquei tão animada com essa ideia de solução dialogada que quis fazer parte do projeto”, conta. E já se vão dois anos de atuação de dona Marisa no centro.

Outras ações, que não são parte do Pronasci, foram executadas pela gestão municipal, com a intenção de melhorar as condições de vida no bairro. A prefeitura instalou uma Unidade de Pronto Atendimento com funcionamento de 16 horas por dia, pavimentou 8,7 quilômetros de ruas e canalizou um córrego que cortava o bairro por cerca de três quilômetros. Praças foram revitalizadas e foi construída a praça da Juventude, com diversos espaços para práticas esportivas.

Pacífico afirma que o entendimento da gestão foi de que ações de segurança pública não podem ser realizadas isoladas de outras necessidades da população. “Tem que entrar juntos. Não adianta ter a melhor polícia, os melhores meios e os melhores equipamentos se não tiver casado com melhorias gerais. Tudo tem que vir junto: emprego, renda, educação, saúde, habitação. É nisso no que nós estamos apostando”, explica.

Mesmo com esses avanços, o Território de Paz não tornou o Guajuviras um paraíso. Alguns entrevistados relataram que ainda ocorrem casos de violência, inclusive assassinatos, mas não na mesma proporção que ocorria há cinco anos. A auxiliar administrativa Tainá Maciel explicou a situação: “A situação melhorou, mas ainda ocorrem assassinatos. Sobretudo no fim de semana. Infelizmente, a venda e o uso de drogas ainda é muito presente na comunidade”, explicou.

Nas palavras do próprio Pacífico, a gestão tem consciência de que nem todos os problemas foram resolvidos. “Virou um território de paz, mas muita coisa precisa ser feita, há muitos problemas sérios a serem resolvidos: a questão da habitação para todo mundo, iluminação, faltam alguns outros serviços públicos. A tendência é ser aperfeiçoada, cada dia um passo à frente. Não solucionou tudo da noite para o dia. É uma continuidade que precisa ser feita”, conclui. Desde o ano passado, o projeto Território de Paz começou a ser expandido para os bairros vizinhos Mathias Velho e Harmonia, onde está em fase de instalação.