10 anos depois

Junho de 2013 ‘nacionalizou a tarifa zero’, diz integrante do MPL. Cobranças seguem abusivas 

Em meio aos 10 anos do Movimento Passe Livre (MPL), entidades refletem legado das jornadas de 2013 e pressionam na Câmara a aprovação da PEC 25/2023 que estabelece a tarifa zero e cria o Sistema Único de Mobilidade (SUM)

Marcelo Camargo/ABr
Marcelo Camargo/ABr
"Estamos em um momento em que a tarifa zero é debatida nacionalmente e isso nos entusiasma", diz integrante do MPL

São Paulo – A epopeica jornada de junho de 2013, que levou milhares de pessoas às ruas em todo o país, segue opondo os que atribuem aos protestos a um legado positivo ou negativo, mas fortaleceu a luta pela tarifa zero. As manifestações marcaram o início de uma década turbulenta que, por uma sucessão de acontecimentos, desencadearam no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016. E na ascensão da extrema direita que justificaram a análise malquista. 

A integrante do Movimento Passe Livre (MPL) Millena Nascimento, porém, faz uma outra leitura. Com destaque de pautas ligadas à justiça territorial que estão presentes até hoje. Nesse caso, principalmente, a da tarifa zero. O MPL marcou o início de atos massivos que passaram a reunir de 5 mil para ao menos 60 mil manifestantes na noite de 6 de junho de 2013. O mote era “se a tarifa não baixar, a cidade vai parar”, contra o aumento da passagem no transporte público da capital paulista, que passava de R$ 3 para R$ 3,20. 

Dez anos depois, a demanda popular ainda não foi atendida no pós-junho. Mas “estamos em um momento em que a tarifa zero é debatida nacionalmente e isso nos entusiasma”, reflete Millena. 

“Porque fomos tratados como loucos, devaneios, jovens alucinados que queriam uma utopia. E hoje a gente vê pessoas que viraram os olhos e faziam cara feia para a tarifa zero, em um momento de repensar a própria atitude. E achamos que isso é um ganho da luta na rua e a luta está hoje nesse jeito que está porque teve muita luta na rua. (…) 2013 nacionalizou a pauta da tarifa zero”, defende. 

PEC 25 e a chance de mudança

A análise da integrante do MPL foi feita nesta quinta-feira (15) diante uma plateia lotada que acompanhava uma audiência pública sobre o tema na Câmara dos Deputados. Convocada pelas comissões de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial e de Legislação Participativa, a reunião visava debater a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 25/2023, que estabelece a tarifa zero e cria o Sistema Único de Mobilidade (SUM). 

A PEC 25 foi protocolada em maio pela deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP), com apoio da sociedade civil e organizações do Terceiro Setor após um longo processo em que junho de 2013 também foi marcante. Apesar de a Constituição Federal de 1988 garantir o transporte como um direito social, a regulamentação, via emenda constitucional, foi promulgada apenas em 2015. No entanto, de acordo com os especialistas e parlamentares, a regra ainda hoje no Brasil “é a da baixa qualidade dos serviços e a cobrança de tarifas desproporcionalmente altas”. 

“(Por isso) estamos aqui para pedir e pressionar os deputados a aprovarem a PEC 25 da Erundina e levar o SUM para o governo federal e a tarifa zero como uma pauta nacional. Porque o transporte público é precário não só em São Paulo, meu lugar de fala, mas em todo o Brasil. A lógica do transporte enquanto mercadoria é nacional. Então a nossa precarização é lucro em todos os lugares, menos nas 74 cidades que têm tarifa zero hoje. Antes de 2013 eram apenas três cidades, então é um ganho da luta”, advertiu Millena. 

Impacto das catracas

De acordo com os especialistas, a cobrança “serve para impedir uma quantidade gigantesca de pessoas de usarem o transporte coletivo”. A crítica é do ex-secretário de Obras da Prefeitura de São Paulo Lúcio Gregori, que vê aumentar a demanda por transporte nas cidades que implementaram o direito social. Para viabilizar o Sistema Único de Transporte, a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS), Gregori defende, por exemplo, que proprietários de automóvel paguem um valor simbólico pela utilização do espaço viário. 

Nas cidades brasileiras, aponta ele, 75% do espaço é ocupado por veículos privados que utilizam de um sistema construído, asfaltado e pintado “sem pagar por isso”. A ideia é que a contribuição possa variar de R$ 3,50 para carros potentes, pago em até 10 vezes por ano; R$ 2,50 para veículos médio e cerca de R$ 1 real para carros 1.0 e veículos de transporte de carga. 

“Apliquei isso tudo como hipótese na frota de São Paulo no ano de 2019. A receita original dessa contribuição foi de R$ 6,5 bilhões. E o custo do sistema de transporte no sistema de São Paulo, em 2019, foi de R$ 6,8 bilhões. Portanto, não precisa fazer muita teoria, muita ‘coisarada’ por aí. É fazer o óbvio, uma questão tributária, minimamente justa e racional, que é o que se propõe, e que a PEC 25 propõe, e que imagino que o Congresso Nacional terá a hombridade, a seriedade e o compromisso com o povo brasileiro de aprová-la e assim estabelecer as condições elementares e básicas para se fazer a tarifa zero no Brasil”, cobrou Gregori. 

Caso Maricá

Desde 2014, o transporte público gratuito é uma realidade no município de Maricá (RJ). O presidente da Empresa Pública de Transporte da prefeitura, Celso Haddad, também participou da audiência, onde apontou para dados que mostram uma melhoria no serviço. Houve um salto, por exemplo, no número de linhas criadas, que passaram de 3, em 2006, para 39 em toda a cidade, em 2016. Atualmente, são mais de 120 mil deslocamentos diários nos “vermelhinhos”, como são conhecidos os ônibus de Maricá. 

As bicicletas também integram a linha de transporte público. Ao todo, são 25 estações com 250 equipamentos e mais de 100 mil usuários. “Não pode fugir da melhoria do serviço, a gente intitula que o serviço público tem que ser o melhor possível”, afirmou o presidente. 

Nacionalmente, o cálculo é que o financiamento do transporte gratuito e universal custaria, no país, R$ 70,8 bilhões por ano, o equivalente a 1% do PIB. O dado é de um estudo realizado em 2019 pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). A proposta das entidades é que o transporte público seja pensado nas três esferas – federal, estadual e municipal – com aportes também da União. 

É pelo direito à cidade

“As pessoas de baixa renda pagam, proporcionalmente, muito mais impostos do que as pessoas de alta renda. Então não tem essa história de que ‘tarifa zero é mais uma benesse, mais um programa social’. Não é. Essas pessoas também pagam impostos e não são tão bem subsidiadas quanto às pessoas de alta renda. (…) E a tarifa zero vai no sentido oposto dessa cadeia de privilégio, mas para isso precisa que os subsídios hoje pagos não vão direito para os cofres das empresas de transporte público. Porque também da forma que está hoje não é legal, continua sendo altamente subsidiado, mas a população não usufrui dessa benesse, porque as tarifas não são reduzidas”, observou  a assessora política Inesc, Cleomar Manhas. 

Em um relato emocionante, a idealizadora e coordenadora do Observatório dos Trens, Rafaela Albergaria, lembrou que, em muitos casos, os mais pobres pagam com a própria vida pelo acesso ao transporte. Também articuladora do Mulheres Negras Decidem e Coalizão Triplo Zero, Rafaela compartilhou que só passou a discutir e entender o impacto da mobilidade quando, em 2017, sua prima Joana foi morta arrastada por um trem no Rio de Janeiro. 

“A mobilidade é sobre existência, sobre liberdade. Sou de um território que tem mais 500 mil pessoas e não tem nenhum hospital público. Se as pessoas querem emergência, elas têm que sair do município. (…) Não é só pela Joana, mas por todas as outras pessoas que morrem atropeladas pelo trem, que não têm dinheiro da passagem para acessar um trabalho. Discutir mobilidade é discutir acesso e direito à cidade”, frisou a ativista. 

Ainda junho de 2013

A professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisadora da área de reformas viárias e urbanísticas Marli Silva também chamou atenção para a situação grave na região da Amazônia, dependente do transporte fluvial e também vítima de constantes acidentes. De acordo com a pesquisadora, essa modalidade deve ser incluída no debate da tarifa zero e sob uma perspectiva de estatizar o sistema, hoje controlado por agentes privados. 

“Essa precariedade é uma das maiores contradições sociais do nosso país. Vemos as elites transitando no espaço aéreo sem enfrentar o desgaste e o sofrimento que é andar em um sistema congestionado e superlotado. E esse problema não teria se tornado pauta se não houvesse toda a luta de 2013 com milhares de jovens na rua contestando o abuso das tarifas exorbitantes que vigoram em nosso sistema de transporte ‘público'”, concluiu Silva. 

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