Violência

‘Ter que sair do meu país para reivindicar o que é meu direito?’, lamenta viúva de sem-terra assassinado

No primeiro dia de julgamento na Corte Interamericana, viúva e assentada falam sobre episódio ocorrido em 2000 no Paraná que matou um e feriu 185 trabalhadores

Arquivo familiar/Reprodução YouTube
Arquivo familiar/Reprodução YouTube
Antonio com duas filhas e Maria Sebastiana no julgamento, hoje: segundo a viúva, ele era um 'paizão' na comunidade

São Paulo – Maria Sebastiana Barbosa Pereira tinha 35 anos em 2 de maio de 2000, e cinco filhos, três meninas e dois meninos, de 4 a 15 anos, quando soube por um vizinho de assentamento em Candói (PR) que seu companheiro tinha sido morto em uma rodovia a centenas de quilômetros dali, em Campo Largo. Nesta segunda-feira (27), primeiro dia de julgamento, ela se apresentou perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para contar sua história e pedir justiça para Antonio Tavares Pereira, que morreu baleado por um policial. Outros 185 ficaram feridos.

“Olha, gente, é muito difícil. São 22 anos esperando, lutando, e ter que sair do meu país para reivindicar uma coisa que é meu direito?”, disse Maria Sebastiana aos juízes da Corte, em São José, na Costa Rica, sede do tribunal. “Só Deus sabe o que passou a família. Uma mãe criar sozinha (cinco filhos), dar estudo, dar alimentação e cuidar da saúde, tudo. Isso eu quero que não se repita mais para os nossos trabalhadores, só quem passou e que sofre até hoje é que sabe como é difícil.” Segundo ela, seu companheiro era o “paizão” da comunidade, sempre participando de todas as atividades. “Ele já era assentado, mas lutava para que todos conseguissem uma terra.”

Depressão e mudança

Segundo os relatos, Antonio foi baleado na altura do abdome e morreu em consequência de hemorragia. Maria Sebastiana e dois irmãos do trabalhador viajaram horas até chegar ao hospital, onde não conseguiam informações, até descobrir que ele já estava morto, no necrotério. “Uma pessoa querida na comunidade. Um ótimo marido, um ótimo pai, ajudava no serviço de casa, cuidava das crianças. A gente trabalhava o tempo todo juntos, puxava água, picava lenha e ajudava nos afazeres de casa junto comigo”, lembrou em seu depoimento à Corte. O julgamento vai prosseguir amanhã.

A viúva conta que a mãe de Antonio morreu seis meses depois. Alguns de seus filhos tiveram depressão, e um deles não conseguiu terminar os estudos. Assim, também não conseguiram permanecer no assentamento – mudaram de Candói para Querência do Norte. Ela só sabia das investigações por meio dos advogados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Relatou que não teve apoio – financeiro ou psicológico – do Estado. Em 2014, por uma decisão judicial, passou a receber o equivalente a dois salários mínimos para dividir em três, com dois dos filhos, até que eles completassem 25 anos.

Um dos representantes do Estado na audiência de hoje na Corte Interamericana, o embaixador do Brasil na Costa Rica, Antonio Francisco da Costa e Silva, não fez perguntas à viúva. Apenas reiterou o “firme compromisso” do país com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Ação policial em Campo Largo, em 2000. Local agora tem um monumento criado por Oscar Niemeyer (Fotos: APP-Sindicato PR e Wellington Lenon/MST-PR)

Tiros e mordidas

Quem também depôs hoje na Corte Interamericana foi Loreci Lisboa, que na época era acampada. Viúva havia pouco tempo, tinha 26 anos e dois filhos pequenos. Ela relatou que recebeu três tiros de borracha (perna, braço e nádega). “Tomei uma coronhada na cabeça que amontoei no chão”, contou. Mesmo caída, ela sofreu mordidas nas pernas de um cachorro que era atiçado pelos soldados. Havia mais de 50 ônibus no local, que levavam trabalhadores rurais de várias regiões até Curitiba, para participar de um ato relativo ao 1º de Maio, mas foram bloqueados na estrada.

“Eles (policiais) pararam os ônibus, fizeram com que todo mundo descesse, pusesse as mãos assim (para trás), encostando no ônibus… (…) Quando a gente chegou com o ônibus, a polícia já tinha feito a a barreira ao redor. Mandaram tudo mundo desembarcar do ônibus, sair… Eles mandando ir pra trás, pra trás… (…) Quando chegou um certo momento lá, um policial foi entrando com arma na mão no meio do povo”, recordou Loreci. Foi neste momento, relatou, que saiu o tiro que atingiu Antonio. “Eu tinha um lencinho, coloquei em cima dele”, afirmou, ao explicar que o trabalhador sangrava muito. Um ano depois, foi inaugurado no local um monumento criado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, em homenagem a Tavares e às vítimas do latifúndio.

Padrão do sistema judicial

“Há um padrão na atuação do sistema de justiça nestes casos: de um lado, falta de apuração dos casos de violência contra trabalhadores rurais sem-terra e, de outro, a ausência de responsabilização dos agentes da segurança pública sobre as violações”, afirma Camila Gomes, assessora jurídica da organização Terra de Direitos. “A luta pelo direito à terra deveria ser tratado como exercício da liberdade de expressão e, portanto, protegido. No entanto, é tratado como assunto de polícia. E os casos de violência policial comumente ficam na impunidade no Brasil.”

Dessa forma, além da Terra de Direitos e do MST, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Justiça Global e a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) acompanham o caso. As organizações solicitam que a Corte Interamericana determine ao Estado brasileiro a elaboração de um Plano Nacional de Combate à Violência no Campo, entre outras medidas.