Memória

Projeto sobre ruas é inspiração em momento de disputa política, diz Haddad

Durante apresentação de programa para mudar nomes de logradouros com personagens ligados a ditaduras, prefeito paulistano, ministro Pepe Vargas e secretário Eduardo Suplicy enfatizaram cenário de tensão

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Castello Branco (esq), ex-presidente do regime militar que tem placa de logradouro público em São Paulo

São Paulo – A apresentação do programa Ruas de Memória, da prefeitura paulistana, teve como pano de fundo o cenário de tensão política no país. Enquanto falavam da proposta de alterar nomes de logradouros que façam referência a personagens ou datas ligadas a ditaduras, dirigentes da prefeitura e do governo federal citavam possíveis ameaças à jovem democracia brasileira.

Para o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, o programa servirá de inspiração em um “momento de disputa política”. Ele também se disse perplexo com quem acha que “eleição é coisa supérflua”. O secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o ex-senador Eduardo Suplicy, afirmou que não se pode permitir “que nossa democracia seja quebrada por quem não queira respeitá-la”. E o ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Pepe Vargas, defendeu “a construção de uma frente suprapartidária em defesa da democracia e dos direitos humanos”, enquanto “setores do centro democrático flertam com golpistas”. “Não passarão”, emendou.

O Ruas de Memória propõe alterar nomes de dezenas de logradouros que hoje trazem homenagens a figuras identificadas principalmente a ditadura iniciada em 1964, como os ex-presidentes Castello Branco e Arthur da Costa e Silva, o delegado do Dops Sérgio Fleury, os generais Golbery do Couto e Silva e Olímpio Mourão Filho e o empresário Henning Boilesen. Estão lá também o médico-legista Mário Santalucia, do Instituto Médico Legal de São Paulo, o ex-ministro Alfredo Buzaid, o ex-governador paulista Abreu Sodré e o ex-sargento da Brigada Militar gaúcha Alberi Vieira dos Santos, apontado como colaborador do Centro de Informações do Exército. Além do Viaduto 31 de Março, há também uma rua do mesmo nome, no bairro do Morumbi.

A Coordenação de Políticas de Direito à Memória e à Verdade mapeou 38 locais, mas o levantamento inicial contém 22 logradouros públicos, entre ruas (12), praças (quatro), avenidas (três) e viadutos ou vias elevadas (três). Oito estão na zona oeste, cinco na região norte, quatro na zona sul, três na leste e dois no centro. Dos 22 nomes, 21 estão ligados ao golpe de 51 anos atrás e um ao Estado Novo (1937-1945): Filinto Müller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas e posteriormente senador pela Arena, partido de sustentação do regime iniciado em 1964. Um possível alvo é o Elevado Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão.

Participação

Por se tratar de um tema polêmico, divisor de opiniões, a prefeitura pretende ser cautelosa nas propostas de alterações. O objetivo é discutir cada passo com moradores e vereadores. “A gente quer fazer uma construção muito cuidadosa”, diz o secretário-adjunto de Direitos Humanos, Rogério Sottili, lembrando de casos que não avançaram na Câmara Municipal. “À luz dessa experiência, o processo participativo é muito importante. Queremos que seja um movimento de todos os vereadores. Estamos abertos a tudo.”

Sottili afirmou que se trata de um programa “muito mais amplo do que o envio de dois projetos de lei” e que faz parte de uma “disputa de valores” na cidade. “Isso se faz muito mais importante num momento em que a democracia é questionada. Isso acontece porque os processos de violação (de direitos humanos) não foram bem contados. Muita coisa foi jogada para debaixo do tapete.”

A estratégia da prefeitura inclui percorrer os locais identificados e conversar com moradores, promovendo atividades culturais. A primeira experiência ocorreu antes mesmo do lançamento do programa. Em 31 de maio, representantes da secretaria, incluindo Suplicy, foram ao Jardim Lucélia (Grajaú, extremo sul da capital), onde fica a Avenida General Golbery do Couto de Silva. Naquele encontro, surgiu a sugestão de alterar o nome da avenida para Padre Giuseppe Pegoraro, fundador do Centro de Promoção Social Bororé, que atua na região.

Na apresentação do programa, durante a manhã de hoje (13), Haddad assinou dois projetos de lei, entregues simbolicamente ao presidente da Câmara, Antônio Donato. Um veda novas homenagens a personagens identificados com violações de direitos humanos. O outro propõe mudar o nome do Viaduto 31 de Março, na Liberdade, região central, para Viaduto Thereza Zerbini, militante da anistia. Eugenia Zerbini, filha de Thereza, mandou mensagem de agradecimento, dizendo-se “comovida” e citando o que contou ser uma das frases preferidas de sua mãe, de Santo Agostinho: “O coração é a sede da memória”.

Donato destacou a “coragem” de Haddad ao apresentar o programa, lembrando que esse tema já surgiu em outras ocasiões no Legislativo municipal, a partir de propostas dos vereadores Nabil Bonduki (atual secretário de Cultura) e Orlando Silva. “O debate vai ter de ser feito. A gente só vai derrotar as forças obscurantistas no debate”, afirmou. O presidente da Câmara fez uma comparação entre a proposta de mudança de nome do viaduto (de data para pessoa) com uma alteração ocorrida há anos em Portugal (de pessoa para data): a ponte que atravessa o Rio Tejo, em Lisboa, homenageava o ditador Antônio Salazar, e hoje chama-se 25 de Abril, em referência à Revolução dos Cravos. “A luta pela democracia, em todo o mundo, avança com essas iniciativas.”

Comissão da Verdade

O debate é fundamental nesse caso, afirma o professor Renato Cymbalista, do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade de São Paulo (USP). Mudar de uma hora para outra, sem discussão, seria “um desastre”, diz o professor, que o coordena um grupo de pesquisa (Lugares de Memória e Consciência) na USP. Segundo ele, é necessário “problematizar” questões como abusos do Estado, minorias e violação de direitos, que inclusive têm caráter permanente. “Essas ruas precisam ser trabalhadas, não apenas renomeadas”, defende Cymbalista, ao mesmo tempo em que fala da importância de mudanças, com engajamento da sociedade. “Essa ideia de que o nome é pouco importante deve ser combatida.”

A coordenadora de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria de Direitos Humanos, Carla Borges, lembra que o programa segue recomendações e diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e do relatório nacional da Comissão Nacional da Verdade, entregue no final de 2014. Tem inspiração também em outros países, especialmente do Chile, com seu projeto Ninguna calle llevará tu nombre (Nenhuma rua levará o seu nome). “São Paulo não está inventando a roda, mas fazendo o seu dever de casa”, afirma, apontando a existência de logradouros com nomes de pessoas “que não simbolizam os valores de uma cidade que se pretenda realmente democrática”.

Segundo Carla, em vez de fazer diversos projetos de maneira fragmentada, a opção foi criar um programa “cujo coração é a participação social”, dando novos significados a espaços públicos e lembrando de uma violência que ainda se manifesta no dia a dia. O mapeamento da prefeitura inclui ainda pelo menos 17 equipamentos públicos, entre escolas e ginásios municipais.

Para o ministro Pepe Vargas, o programa faz uma dupla reparação, à medida que propõe uma reparação, mesmo que simbólica, a vítimas da ditadura, e ao propor o debate com as comunidades envolvidas. E cresce de importância no atual momento político, com uma série de propostas de cunho conservador: redução da maioridade penal, de mudança de conceito do trabalho escravo, de revogação do Estatuto do Desarmamento e de transferência de competência para demarcação de terras indígenas.

Haddad fez referência a outros programas da prefeitura (De Braços Abertos, Transcidadania), também originários da Secretaria de Direitos Humanos, e citou o ataque a haitianos ocorrido na semana passada, quando alguns migrantes foram baleados. “É uma cidade que foi construída com mão de obra imigrante e migrante.” Sobre o Ruas de Memória, o  prefeito afirmou se tratar de uma “reafirmação” do compromisso de São Paulo com os valores democráticos. “ E tudo isso será feito em comum acordo com a comunidade”, acrescentou.

Suplicy destacou ainda a Marcha das Margaridas, encerrada ontem, em Brasília, com manifestações de apoio das mulheres do campo à presidenta Dilma Rousseff. “É importante que ela sinta essa força de milhares de margaridas.”

Objeto do primeiro projeto de mudança, o Viaduto 31 de Março ganhou essa denominação em dezembro de 1969, por meio de um decreto assinado pelo então prefeito, Paulo Maluf, que entre as considerações demarcou a data como “marco histórico do maior movimento idealista e patriótico do Brasil”.