Pesquisadora vê escolha de integrantes como chave para Comissão da Verdade

Glenda Mezarobba, do grupo que elaborou anteprojeto da comissão, entende que nomeação não deve pensar em representantes de setores e que dois anos são suficientes para apuração

São Paulo – Glenda Mezarobba, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) especializada na transição de períodos autoritários para regimes democráticos, está certa de que a nomeação de integrantes para a Comissão da Verdade, cuja criação foi sancionada na sexta-feira (18) por Dilma Rousseff, é a chave para o sucesso da apuração de crimes cometidos pela ditadura (1964-85).

Para ela, que trabalhou no grupo interministerial que elaborou o anteprojeto para a criação do colegiado, a comissão tem de ser constituída “por pessoas que tenham uma trajetória de vida de dignidade, de promoção dos direitos humanos, de apreço à democracia”. Ela discorda de um modelo compartimentado para formar o grupo. “Uma Comissão da Verdade – e a experiência de outros países mostra isso – não funciona quando você coloca ‘representantes’. Representante do setor X, das vítimas, das Forças Armadas…”

Glenda acredita que outra questão fundamental é garantir que os integrantes possam contar com uma estrutura que lhes permita conduzir um trabalho eficiente. Ela discorda da avaliação de que dois anos não são suficientes para concluir a apuração, e pontua que reside exatamente no prazo definido a força da Comissão da Verdade.

Confira a seguir trechos da entrevista dada à Rede Brasil Atual

RBA – A Comissão da Verdade é um caminho para concluir a transição democrática do Brasil?

Não se deve ficar preocupado se vai acabar a transição. É equivocado pensar nessa questão sob a ótica de que acaba ou continua. É um processo que não se completou, mas de modo geral todas as democracias são construídas no dia a dia. Não se passa do arbítrio à plena democracia automaticamente. Há muitos países democráticos no mundo, mas há muitas diferenças entre eles.

Por que a Comissão da Verdade é importante? Porque o Estado brasileiro, como qualquer Estado que faz uma transição de um período autoritário ou de exceção, tem a obrigação de lidar com o legado das violações de direitos humanos em massa. As democracias emergentes têm obrigações em relação a essa herança do regime anterior, e isso vale para o Brasil, vale para o Iraque depois da ocupação dos Estados Unidos, para a África depois do apartheid.

Estes Estados em transição têm quatro obrigações. O dever da verdade, o dever da Justiça, o dever da reparação e o dever de reformar as instituições. Quando estamos falando de Comissão da Verdade, falamos do dever que o Estado tem de revelar, na medida do possível, os fatos daquele período que envolvam as violações dos direitos humanos que tenham sido cometidas pelo próprio Estado.

RBA – Como deve ser conduzido esse trabalho?

É importante ter em perspectiva que a gente não parte do zero no caso do Brasil. Já foram abertos muitos arquivos, sobretudo na comparação com outros países da América Latina. Naturalmente faltam os arquivos mais importantes, que são os das Forças Armadas. Tivemos também o Brasil Nunca Mais, que não é uma iniciativa oficial, mas é muito importante e muito meritória em termos de revelação da verdade porque todas as informações que estão ali são de arquivos oficiais.

Um aspecto que parece que escapou ao debate é o que é a Comissão da Verdade. É o espaço onde as vítimas, as testemunhas que viveram o momento têm para contar o que aconteceu. Esse aspecto não pode ser perdido de vista. Muita gente está pensando em termos de identificar torturadores, apontar responsabilidades, que também é importante. Mas a gente precisa lembrar que em 1985, quando se tornou público o Brasil Nunca Mais, foi divulgada em paralelo uma lista com o nome de mais de 400 torturadores. Essa informação já existe. Ela é pública, e há quase três décadas. Tem-se bastante informação. 

A Comissão da Verdade é o espaço para as vítimas poderem contar as suas verdades, e a partir daí construir ou reconstituir a história do período. Se a Comissão da Verdade funcionar de maneira satisfatória, vai ser o espaço no qual as vítimas vão poder encontrar reconhecimento pelo Estado como vítimas e como cidadãs. 

RBA – Qual deve ser o cuidado na nomeação dos sete integrantes?

O êxito da Comissão da Verdade está baseado em quem vai constituí-la e em como os trabalhos serão conduzidos. Ela tem de ser constituída por pessoas que tenham uma trajetória de vida de dignidade, de promoção dos direitos humanos, de apreço à democracia. Sobretudo quem vai presidi-la. Uma Comissão da Verdade – e a experiência de outros países mostra isso – não funciona quando você coloca ‘representantes’. Representante do setor X, das vítimas, das Forças Armadas…

A Comissão não deve ser pensada em termos de representação. O que funciona melhor são pessoas comprometidas com respeito aos direitos humanos, podem ser de matizes político-partidárias diferentes – de direita, de esquerda. Muito da qualidade do relatório final depende deste arranjo de sete pessoas e de como elas vão trabalhar. Como vai ser o regulamento interno que vão poder elaborar para nortear os trabalhos. Vão ter de contar com apoio do governo e de universidades. O país é imenso e é preciso montar uma estrutura, não são sete pessoas que vão dar conta disso.

Eu era favorável a um prazo de um ano, prorrogável por mais um. Ao contrário do que saiu no noticiário e do que se pensa no senso comum, a experiência e a literatura indicam que a Comissão da Verdade precisa ter um período definido de atuação. O impacto que ela pode causar tem conexão com isso. Não se deve pensar em uma comissão que vá durar ad infinitum, porque aí também uma parte da força dela se perderia.

RBA – Terminados esses dois anos, poderia ser pensada uma nova etapa da Comissão da Verdade?

Acho que se a comissão começar a funcionar efetivamente, com estrutura montada, dois anos são suficientes. Não seria necessário prazo maior. Inclusive por isso que falamos, de que tem uma documentação do Brasil Nunca Mais com quase todos os processos que tramitaram no Superior Tribunal Militar, com relatos de tortura em minúcias, tem todos os documentos abertos nos arquivos, tem o material do Arquivo Nacional.

Nesse sentido, o tempo está a nosso favor. De modo geral, as comissões da verdade são constituídas logo após a ruptura com o regime autoritário. No nosso caso temos um conjunto de informações muito maior do que se teria imediatamente após o fim da ditadura.

RBA – Por outro lado, o demorar tanto tempo pode ter prejudicado esse trabalho?

Não acredito que possa ter prejudicado especificamente esse trabalho. Causa incômodo a gente não ter acessado ainda os arquivos das Forças Armadas. No desenvolvimento da Comissão da Verdade eventualmente podem aparecer documentos, ainda podem ser feitas doações de documentos, integrantes das Forças Armadas que não concordaram com as violações daquele período vão se dispor a falar, contar o que sabem. Não foi a totalidade das Forças Armadas que cometeu esses crimes, foram indivíduos. Enquanto a gente não tem isso muito claramente delimitado, há essas recriminações de grupo. Quero acreditar que havia milhares de pessoas nas Forças Armadas que eram honestas e decentes, e que não concordavam com essas práticas.