Arquitetando a resistência

Padre Júlio Lancellotti: ‘Que todos tenham sua dignidade respeitada’

“Não quero que eles saiam da rua para ficar na calçada, embaixo de um viaduto, mas sim em uma cama, não em albergue. Quero que fiquem em locação social, república, numa forma de vida que seja humana”, afirma o padre

Reprodução
Reprodução
No viaduto que leva o nome de Dom Luciano, ativistas protestaram neste sábado (3) com flores, no lugar das pedras, por uma cidade mais humana

São Paulo – Referência em direitos humanos, aos 72 anos, o padre Júlio Lancellotti não titubeia ao dizer que o mais importante é estar sempre ao lado dos que perdem. É o legado que afirma ter sido confiado a ele por Dom Luciano Mendes de Almeida, o religioso incansável na luta pelos direitos da população mais pobre. É por isso que quando chegou na última terça-feira (2) ao viaduto que leva o nome de Dom Luciano, no Tatuapé, zona leste de São Paulo, e se deparou com as pedras da prefeitura cimentadas para expulsar pessoas em situação de rua do local, o pároco não conseguiu esconder sua indignação e tristeza diante de tamanha opressão. 

Ali, há pelo menos 9 anos, padre Júlio Lancellotti reivindicava ao então prefeito Gilberto Kassab, que a alça de acesso às avenidas Salim Farah Maluf e Radial Leste levasse o nome do religioso que percorria justamente aquele caminho em direção às periferias da região. A obra levou o nome do bispo dos pobres, mas, desde o dia 28 de janeiro, acabou ficando mesmo conhecida por ser palco de uma “arquitetura hostil”. 

Estratégias para excluir a população de rua, criadas pelo próprio poder público, são propostas presentes em São Paulo, no Brasil e no mundo. E, segundo o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, elas também são uma reprodução da forma como pensa parte da população. Mas, diante daquela imensidão de pedras, padre Júlio também viu uma oportunidade para passar um recado numa era de tantos retrocessos: de que “o nome da nossa esperança, nesse momento, é resistir”. 

Derrubar para construir

Com um ato simbólico, o padre Júlio Lancellotti chamou atenção de todo o Brasil ao retirar a marretadas as pedras que impediam os sem-teto de se abrigarem debaixo do viaduto. Em entrevista ao jornalista Gilberto Nascimento, do Jornal Brasil Atual, ele comenta que, enquanto derrubava os paralelepípedos de concreto, muitos passavam e o xingavam. 

Contudo, Lancellotti também se recorda da sensibilidade que a ação despertou, ao derrubar àquelas que eram as “pedras da injustiça, da maldade e da iniquidade que atinge de maneira cruel o nosso povo”. 

“O mais importante é que tenhamos claro que nós não queremos que se tirem as pedras para que eles durmam lá. Mas que se tirem essas pedras para que construam casas. E que debaixo desses viadutos possam ter ecopontos, algo para reciclagem, estacionamento, alguma coisa que essa mão de obra possa participar”, ressalta o padre Júlio. “Ninguém quer que eles fiquem na rua, eu não quero também. Não quero que eles saiam da rua para ficar na calçada, embaixo de um viaduto, mas sim numa cama, não em um albergue. Quero que fiquem em uma locação social, república, numa forma de vida que seja humana, que todos tenham respeitada sua dignidade”, completa.

As feridas da cidade

O recado também é dado pelas redes sociais do religioso, que compartilha fotos de São Paulo e até de outras cidades que repetem as estratégias de exclusão. 

No viaduto de Dom Luciano, a própria gestão Bruno Covas (PSDB), após as críticas, concluiu a derrubada das pedras. O município alegou que a obra tinha sido um ato isolado de um funcionário, que foi exonerado do cargo. Uma desculpa “esfarrapada”, na análise do padre Júlio. E que não responde como uma instalação pôde ser feita sem autorização e supervisão, nem qual foi o motivo da construção e o valor gasto para colocar e retirar as pedras. 

Mesmo assim, o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, propõe que “a cidade precisa se encontrar com ela mesma”. “Perceber quais são suas dores e feridas. Nós que temos uma ferida na mão, não vamos decepá-la, vamos ter que cuidar dessa ferida. É isso que precisamos aprender, a cuidar das nossas feridas, da nossa dor, do nosso sofrimento. E não querer escondê-lo para ele ir apodrecendo, gangrenando e nós dizendo que não tem nada. Nós temos um contingente muito grande de seres humanos que estão jogados nas ruas. Aumenta o número de mulheres, de mulheres com crianças, de pessoas LGBTQIA+, aumenta o número de pessoas idosas nas ruas. Então, precisamos ter diferentes respostas para diferentes dimensões da existência humana”, conclui o pároco. 

Confira a entrevista 

Redação: Clara Assunção – Edição: Helder Lima