Nada de novo

Operações na ‘Cracolândia’ são reproduções violentas de ações que já fracassaram

Especialistas reprovam uso da violência para dispersar o fluxo como método de tratamento e criticam governo e prefeitura de São Paulo por falta de estratégia para atender as pessoas que vivem no local

Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Ação parece inspirada na fracassada operação Dor e Sofrimento, do governo Kassab. Os agentes têm feito com que as pessoas em situação de rua fiquem vagando pelo centro e sejam levados à delegacia

São Paulo – As gestões do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), e do governador paulista, Rodrigo Garcia (PSDB), não possuem planejamento para atender as pessoas que vivem na região conhecida pejorativamente como Cracolândia, no centro da capital, para além da repressão social. A Rádio Brasil Atual solicitou aos dois governos as metas e os prazos da ação, iniciada há uma semana, com atuação das policias Civil e Militar e da Guarda Civil Metropolitana. 

Houve prisões de traficantes e dispersão das pessoas em situação de rua e usuários de drogas que estavam vivendo na Praça Princesa Isabel, no dia 11. Porém, não houve estratégia de assistência social ou de saúde para acompanhar as ações, embora o governo Garcia alegue que a busca por tratamento cresceu 23% no Centro de Referencia de Álcool Tabaco e Outras Drogas (Cratod) e no Recomeço, programas estaduais de atendimento a dependentes químicos. 

No dia 12, segundo dia das ações, Raimundo Fonseca Junior, um dependente químico de 32 anos foi morto a tiro por um policial civil. O Ministério Público de São Paulo abriu inquérito para investigar as ações na região. O governo Nunes limitou-se a dizer à reportagem que vai prestar os esclarecimentos necessários ao MP-SP. Já o governo Garcia encaminhou, exclusivamente, uma nota da Secretaria da Segurança Pública justificando as ações policiais, demonstrando que a única via proposta para atuar na Cracolândia é a da repressão. 

É combate aos pobres

Ontem à tarde, uma nova operação da Polícia Civil, com a PM e a GCM, foi novamente deflagrada na região. De acordo com informações da Ponte Jornalismo, a Rua Frederico Steidel, ao lado do Terminal Amaral Gurgel e da estação de metrô Santa Cecília, foi cercada. E as pessoas tiveram de sentar no chão e só poderiam sair após uma revista minuciosa. Um homem detido na operação contou à Ponte que os policiais chegaram jogando bombas de efeito moral e atirando com balas de borracha. À imprensa, a Polícia Civil alegou que o objetivo era cumprir 32 mandados de prisão contra traficantes que ficaram pendentes da ação na praça Princesa Isabel.

Para o psiquiatra Flávio Falcone, que integra a equipe do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Proad-Unifesp)  e é idealizador do Projeto Teto, Trampo e Tratamento, na Cracolândia não se trata de combate ao tráfico, mas de combate aos pobres.

“Não vejo essas ações como ações de combate ao tráfico, como vem sendo dito. Para mim são ações de combate aos pobres. Se fosse ação de combate ao tráfico teria que combatê-lo no resto na cidade, porque tem tráfico também na Vila Madalena, Higienópolis, Pinheiros, em todos os bairros. A Cracolândia não é o único lugar. Então tem um problema social acontecendo e de saúde e está se usando a justificativa do combate ao tráfico para resolver um problema social que é a quantidade de moradores de rua que explodiu, principalmente depois da pandemia, no centro da cidade. E a prefeitura não tem uma solução a não ser tentar expulsar essas pessoas da região através de atitudes violentas.”

Dor e sofrimento

Falcone destaca que a ação dos governos Nunes e Garcia parece inspirada na fracassada operação Dor e Sofrimento, do governo de Gilberto Kassab, realizada em 2012. Os agentes têm feito com que as pessoas em situação de rua e dependentes químicos fiquem vagando pelas ruas do centro e sejam levadas à delegacia, crendo que essa violência as fará pedir ajuda e tratamento. Porém, o psiquiatra avalia que essa ação torna ainda mais difícil a atuação dos profissionais de saúde e da assistência social. E só busca ser um caminho para a internação compulsória, usando o artigo 28 da Lei de Drogas como base.

“Eles vão levar todo mundo para a delegacia, fazer as pessoas assinarem esse artigo 28, e encaminhar as pessoas para tratamento. Só que eles não disseram aonde serão esses tratamentos e provavelmente serão em comunidades terapêuticas que são praticamente o manicômio. Não tem proposta terapêutica nenhuma, há trabalho escravo, então a gente está regredindo para uma estratégia que já foi tentada e que já sabemos que não funciona do ponto de vista social e de saúde. Mas eles acham que funcionam do ponto de vista higienista, porque é isso que está se tentando, tirar a população em situação de rua do centro”.

O psiquiatra considera que a ação atual é meramente eleitoreira, sem qualquer estratégia de atuação continuada de saúde e assistência social. Falcone destaca ainda que a solução do problema passa por ações de longo prazo, como era o caso do Programa De Braços Abertos. Elaborado na gestão do prefeito Fernando Haddad (PT), a iniciativa era baseada em um programa canadense que levou décadas para atingir seus objetivos.

De olho no apoio eleitoral

Segundo Falcone, uma pesquisa feita por organizações que atuam no Programa Recomeço, do governo estadual, mostrou que as pessoas que vivem na Cracolândia demandam moradia, trabalho e tratamento. Justamente o que era oferecido no programa De Braços Abertos. Mas os governos atuais possuem ligações políticas com as comunidades terapêuticas, que acumulam denúncias de violação de direitos humanos e resultados pífios, critica.

“A gente já sabe o que funciona e o que precisa ser feito. O problema são os atravessamentos das comunidades terapêuticas que são acordos econômicos entre as igrejas e os governos que são extremamente ineficazes, equipamentos com diversas violações de direitos e que agora, com o governo de Jair Bolsonaro, adquiriu muito poder político. Então eles se legitimaram como uma prática pública financiada por dinheiro público. O que se tem feito é a transferência de recursos para esse tipo de atividade que, no meu ponto de vista, é muito mais um acordo para pagar apoio eleitoral do que fazer uma atividade de cuidado e de saúde, porque não é isso que é feito”, contesta.

O advogado Ariel de Castro Alves, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, considera que as ações policiais para combater o tráfico são necessárias, mas estão ocorrendo com décadas de atraso. Ele destaca que são necessárias outras iniciativas para atuar com as pessoas que vivem na chamada Cracolândia. 

Mini-cracolândias

“Naquela região não basta as ações policiais e de limpeza urbana, também tentativa de limpeza social e higienização. O principal seria termos um centro de triagem e encaminhamento daquelas pessoas para centros de tratamento, clínicas, residências terapêuticas em operações conjuntas com as famílias dos usuários de drogas. Os vínculos e apoio familiar são essenciais para a adesão das pessoas aos tratamentos. Já tivemos ali centros de triagem e encaminhamento que foram, infelizmente, fechados e abandonados pela prefeitura e pelo Estado”, lamenta o advogado.

Ariel avalia que houve um grande retrocesso na atuação social e de saúde do poder público na região, sobretudo com o fechamento das tendas, do complexo Prates e do Programa De Braços Abertos. E que ações meramente repressivas, além de não resolver o problema, o espalham, criando outras cracolândias em diversos pontos da cidade. “Isso acaba dificultando ainda mais uma solução do problema. Então de fato essas ações da Guarda Municipal, junto com a PM, expulsando as pessoas de lá como uma forma de higienização e limpeza social, em conjunto com o aparato da limpeza urbana da prefeitura fez ampliar o problema, fez criar várias ‘minicracolândias’ que vão cada vez aumentando. Então não resolvem situação e até ampliam toda essa problemática”, adverte.

No último domingo (15), ativistas de direitos humanos e pessoas em situação de rua articulados pelo movimento A Craco Resiste protestaram contra a ação dos governos Nunes e Garcia. O grupo destacou que sem políticas sociais, de habitação, saúde e trabalho, não haverá paz para o centro de São Paulo.