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Programa da prefeitura de São Paulo para a população de rua não prioriza habitação. ‘Mais do mesmo’

“Isso não é moradia”, diz pesquisadora sobre a Vila Reencontro, criada por Ricardo Nunes para abrigar temporariamente parte das pessoas em situação de rua em casas de 18 metros quadrados

Prefeitura de São Paulo/Secom
Prefeitura de São Paulo/Secom
As propostas de uma Vila Reencontro e de um auxílio-reencontro, decretadas no último dia 24, ainda estão longe de representar o modelo de "moradia primeiro", avalia especialista

São Paulo – Anunciado na semana passada pela prefeitura de São Paulo como uma regulamentação do serviço de Moradia Primeiro, o programa Reencontro parece bem informado no discurso sobre o modelo Housing First (Primeiro a Moradia), como é conhecida internacionalmente a estratégia considerada hoje a mais eficaz para enfrentar a questão dos sem-teto. Mas, na prática, as propostas dos chamados Vila Reencontro e auxílio-reencontro, decretadas no último dia 24 pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), ainda estão longe de representar uma abordagem inovadora que priorize a habitação para pessoas com longa trajetória de rua e vulnerabilidades sobrepostas.

A constatação é da advogada Luciana Marin Ribas, assessora do Fórum da Cidade em Defesa da População em Situação de Rua de São Paulo. Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) com tese em que estudou a população de rua pela ótica dos direitos humanos, Luciana viajou em 2018 para Vancouver, no Canadá, onde o Housing First foi inicialmente desenvolvido, para acompanhar e conversar com pesquisadores e pessoas que trabalham com o modelo. 

Na ocasião, a pesquisadora teve acesso ao acervo sobre o tema nas duas principais instituições de ensino superior da cidade – Universidade da Columbia Britânica e a Universidade Simon Fraser – e também a albergues, instalações de atendimento à população de rua e moradias modulares voltadas a esse público. Diante dessa experiência, Luciana destaca que o governo de Ricardo Nunes tem se “apropriado de um termo que nem sequer é o que é efetivado no exterior”. 

Vila Reencontro

A Vila Reencontro é formada por casas modulares de 18 metros quadrados, apresentadas por Nunes como opção de moradia aos sem-teto. A primeira vila foi inaugurada em dezembro, no Canindé, na zona norte. Esse primeiro núcleo tem 40 módulos que, segundo a prefeitura, podem abrigar até 160 pessoas – ou seja, uma área de pouco mais de 2 x 2 metros por pessoa. Tratam-se, além disso, de moradias transitórias destinadas prioritariamente a famílias – com ou sem crianças – que estejam há menos de três anos nas ruas. 

De acordo com a pesquisadora, esse tipo de iniciativa também havia no Canadá, mas não como parte do conceito de Primeiro a Moradia que, ao contrário, previa habitações permanentes, em locais escolhidos pelos próprios sem-teto. Além disso, naquele país a prioridade também foi dada às pessoas com longa trajetória de rua. Incluindo aquelas em tratamento contra o uso problemático de substâncias psicoativas. O objetivo era garantir a casa como ponto de partida para a recuperação da autonomia e inclusão social dessas pessoas em situação de vulnerabilidade. 

“A casa modular (no Canadá) também era algo transitório, mas para pessoas sozinhas e justamente para substituir os centros de acolhida”, observa Luciana. Esse projeto, diferentemente do que é a Vila Reencontro, não era reconhecido como moradia, completa Luciana Ribas. Não à toa, em São Paulo ele vem sendo promovido pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) e não pela Secretaria de Habitação. 

Não é moradia

A pesquisadora pondera que as avaliações positivas, amplamente divulgadas pela imprensa tradicional de São Paulo, não podem de fato ser desconsideradas. Principalmente quando se compara a Vila Reencontro com os atuais abrigos geridos pela prefeitura paulistana.

Ainda em 2020, na gestão do então prefeito Bruno Covas (PSDB), reeleito no mesmo ano com Nunes como vice, os centros de acolhimento foram denunciados por más condições pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara de São Paulo. O órgão encontrou galpões superlotados, sem o número adequado de funcionários, banheiros e materiais de higiene, além de infestados de pombos, pulgas e percevejos. 

O que explica a reação da pequena parcela em situação de rua que já teve acesso à Vila Reencontro. “Comparando o que é a Vila Reencontro com o que é o hoje o centro de acolhida e as situações dos centros de acolhida daqui de São Paulo, está melhor, mas não é moradia. Isso é importante falarmos. São containers, de poucos metros quadrados. A pessoa tem a sua individualidade ali, mas ela não tem condições de firmar uma casa”, contesta a advogada. 

“É uma coisa tão horrível (os centros de acolhimento) que você oferece um container e a pessoa já fica muito feliz. Mas não é porque ela está em situação de rua que ela tem que aceitar qualquer situação. Criaram (a Vila Reencontro) chamando de moradia, mas, na verdade, ela parece meio que mais do mesmo também. Você faz a pessoa permanecer nessa condição de dependência”, prossegue.

“Quando a gente fala de moradia, moradia não tem prazo de validade e a Vila Reencontro tem. (…) Tem uma crítica também que é tão pequena (a vila) que não permite nem que a pessoa faça sua própria comida. E isso também é sempre um debate”, acrescenta. O temor dos movimentos sociais que acompanham a população de rua é também de que esse projeto sepulte outras iniciativas e distorça o conceito de Housing First. 

O polêmico auxílio-reencontro

Em outra frente, o decreto municipal também estabelece um auxílio-reencontro, de R$ 600 a R$ 1.200, para quem hospedar pessoas em situação de rua. A medida já havia sido sancionada em junho do ano passado pelo prefeito de São Paulo sob fortes críticas dos movimentos sociais e entidades. 

Tanto no período da aprovação como agora, após a publicação do decreto, a gestão Ricardo Nunes argumenta, sem especificar como, que avaliará cuidadosamente o tipo de vínculo existente entre o candidato ou a candidata a receber e quem está em situação de rua.

O texto do Executivo, nesse sentido, praticamente não restringe as possibilidades, já que parentes próximos – como pais, filhos, cônjuges –, além de vizinhos, amigos ou qualquer um que tenha interesse poderá acolher temporariamente uma pessoa em situação de vulnerabilidade, incluindo donos de pensões com vagas.

Sem diálogo, a judicialização

Ainda em junho, conforme reportou à época a RBA, os movimentos, por meio de nota do Fórum da Cidade, chamaram a atenção para o risco de criação de um “‘mercado de acolhimento’ de difícil fiscalização”. A avaliação também é de que o Estado “terceiriza a responsabilidade” e desconsidera que os conflitos familiares são o principal motivo que leva as pessoas a irem morar na rua (34,7% dos casos), de acordo com o próprio censo da prefeitura de São Paulo, realizado em 2019. “Mais uma vez, cria-se na urgência uma suposta solução paliativa que, longe de enfrentar as múltiplas e complexas causas da situação de rua, pode agravar ainda mais a vulnerabilidade do público a que se destina”, advertiram os movimentos.

Mesmo com as queixas, os representantes da população de rua seguiram sem serem ouvidos pela gestão Nunes, que regulamentou a proposta. As entidades agora estudam, por meio do Fórum da Cidade, a proposição junto ao Ministério e a Defensoria Pública de São Paulo de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) para questionar o programa na esfera judicial dada a ausência de diálogo. 

“Já teve essa experiência nos Estados Unidos e isso provocou muitas atrocidades. Pessoas sequestravam quem estava em situação de rua para conseguir o auxílio. E aí você de novo desconsidera que as pessoas (sem-teto) têm condições de administrar o próprio dinheiro. (…) Quem é que vai fiscalizar? Ninguém explica direito como isso vai funcionar. Então o dono da pensão, se tiver três pessoas em situação de rua, ele vai receber o auxílio. Mas quem vai garantir que ele vai dar comida para essas pessoas, que ele vai permitir que elas adentrem na pensão, que não vai abusar, ser violento? A prefeitura não tem condições de gerenciar nem os centros de acolhida, imagina então um auxílio individual?”, questiona Luciana Ribas. 

Jornal divulga auxílio como “investimento”

O auxílio-reencontro chegou a ser divulgado no dia 18 de janeiro por uma multiplataforma digital, hospedada no portal de notícias R7, como uma forma de obtenção de renda. Na manchete, o veículo Seu Crédito Digital destaca “Você pode ganhar R$ 1.200 para acolher morador de rua”.


“Estão vendo a notícia do auxílio-reencontro como se fosse uma forma de obtenção de renda? Então veja o nível que chegou essa loucura. É claro que você vai ler depois a reportagem e vai ver que não é uma forma de investimento. Mas a forma como é anunciada usa a pessoa em situação de rua como se ela fosse um objeto para ganhar dinheiro. E, no fundo, o auxílio reencontro é isso”, denuncia a advogada. 

Ao analisar o texto do Executivo, Luciana também contestou a criação de um “núcleo gestor” que trata da participação apenas de membros do governo municipal, por meio de sete secretarias. O que pode esvaziar a competência do Comitê Intersetorial de Políticas Públicas para População em Situação de Rua (Comitê PopRua), que é responsável também por gerenciar as iniciativas sobre esse temática.

Repetição de erros

O programa Reencontro ainda foi anunciado por Ricardo Nunes em entrevista coletiva que tratava da divulgação de um pacote de medidas para combater a chamada Cracolândia, como é conhecida pejorativamente a cena de uso e venda de drogas, na região central de São Paulo. Ao lado do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), as iniciativas foram apresentadas como uma “saída qualificada” para as pessoas em situação de rua. A avaliação final da especialista no tema, porém, é que a proposta da prefeitura está longe de interferir de maneira direta no foco do problema: a crise humanitária e a perda de trabalho e renda que tem levado milhares às ruas.

“Ricardo Nunes me parece uma pessoa que não sabe o que fazer. É uma gestão incompetente. Ele fica dando entrevista para parecer que é bonzinho. Mas na verdade ele é tão maléfico quanto qualquer outro gestor. Se fosse realmente uma pessoa séria ele iria escutar o comitê ou pelo menos os movimentos sociais”, finaliza Luciana.