Na agenda legislativa

Marco temporal: sem veto, lei pode ‘dizimar povos inteiros’. Congresso decide nesta quinta

Parlamentares vão decidir se derrubam ou mantêm o veto de Lula ao marco temporal para demarcação de terras indígenas. Também estão em questão o cultivo de transgênicos e o contato com povos isolados

Joédson Alves/Agência Brasil
Joédson Alves/Agência Brasil
Caso os vetos sejam derrubados, a nova lei "repetirá graves violações de direitos dos povos indígenas", além de voltar a "dizimar povos inteiros", adverte o ISA

São Paulo – Deputados e senadores podem decidir nesta quinta-feira (23) se derrubam ou mantêm o veto parcial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à Lei 14.071/2023 que estabelece condições para o reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas, o chamado marco temporal. Adiada em outras duas ocasiões, a análise da matéria ocorrerá em sessão conjunta do Congresso Nacional, de acordo com anúncio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), nessa segunda (20).

Pela tese do marco temporal, defendida pela bancada ruralista, os povos originários só teriam direito às terras ocupadas na data de promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. O trecho, no entanto, ignora decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 27 de setembro deste ano, que declarou inconstitucional o marco temporal e garantiu a proteção aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independentemente de um marco temporal. A decisão foi seguida por Lula, que vetou a tese da proposta legislativa.

O governo federal acatou os pedidos do Ministério dos Povos Indígenas, de movimentos sociais e instituição ligadas à causa que contestaram as limitações do marco temporal. Entre elas, o fato de desconsiderar o histórico de expulsões e deslocamentos forçados sofridos pela população tradicional, além de legitimar o esbulho das TIs. O veto desagradou, porém, a bancada ruralista, que articula para derrubar as mudanças feitas pelo presidente.

Sem vetos, genocídio

Lula também vetou trechos da legislação, aprovada pelo Congresso, que previa a possibilidade de cultivo de transgênicos e de atividade garimpeira em terras indígenas. Assim como retirou a medida que possibilitava a construção de rodovias em áreas indígenas, o pagamento de indenização para ocupantes de terras indígenas e o que permitia o contato com povos isolados. Nesta sexta (17), o Instituto Socioambiental (ISA) divulgou mapas que mostram que, caso os vetos sejam derrubados, a nova lei “repetirá graves violações de direitos dos povos indígenas”. Além de voltar a “dizimar povos inteiros”.

No levantamento, o ISA reuniu 12 casos, como o povo Akuntsu, em Rondônia. Após diversos massacres perpetrados por fazendeiros, madeireiros e grileiros, principalmente nos anos 1980, a população foi reduzida a apenas quatro sobreviventes. O contato forçado com o povo Rikbaktsá, no Mato Grosso, também levou à morte 75% da população por doenças epidêmicas e outras violências.

“A abertura para situações de contato forçado com povos isolados representa uma grave ameaça à integridade física e cultural desses povos. Os exemplos históricos são nítidos a respeito do que pode acontecer: genocídio, reduções populacionais drásticas, morte de culturas e línguas e muito sofrimento pra essas populações”, afirmou o antropólogo Tiago Moreira dos Santos do programa Povos Indígenas no Brasil do ISA.

Mobilização nas ruas e nas redes

Para derrubar os vetos presidenciais, a sessão conjunta do Legislativo terá que ter maioria absoluta. Ou seja, pelo menos 257 votos dos deputados e 41 dos senadores. A bancada ruralista afirma, porém, que já conseguiu garantir o apoio à derrubada dos vetos. Além disso, a redação anterior já havia sido aprovada com 283 votos favoráveis na Câmara e 43 no Senado. Desde o início de novembro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) vem focando no Senado para tentar convencer os parlamentares a manterem os vetos. A estratégica foi adotada dessa forma dado o curto tempo e o número menor de senadores em comparação com o de deputados.

A Apib também convocou indígenas de todo o país para se mobilizar a favor da manutenção dos vetos ao projeto do marco temporal. O grupo deve acompanhar na frente do Congresso a votação nesta quinta. Nas redes sociais, movimentos e apoiadores também preparam um tuitaço para o dia da votação.

Na semana passada, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, pediu à comunidade internacional que faça pressão para influenciar o Congresso a manter o veto do presidente. “Peço o apoio e a manifestação de vocês contra a derrubada dos vetos do presidente Lula sobre o marco temporal”, apelou a ministra durante encontro anual sobre Desenvolvimento Social e Sustentável do Club de Madrid. Esse é o maior foro de ex-presidentes e ex-primeiros-ministros do mundo, com mais de 100 membros de 70 países.

Repercussões

Ao lado da ministra, a deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) também confirmou que a mobilizou tem sido permanente e que a base governista articula um mapa de votos. “Quinta-feira, dia 23, será um dia histórico. Conte com os nossos mandatos e com o Ministério dos Povos Indígenas que aguerridamente nós estaremos do lado certo da história”, destacou a parlamentar. Caso os vetos sejam derrubados, a situação poderá ser judicializada e levada ao STF.

Redação: Clara Assunção