Debate

Da ‘regeneração moral’ ao fim de projetos, danos de 1964 à educação foram permanentes

Acadêmicos analisam consequências da ditadura no sistema de ensino brasileiro, com a introdução da doutrina de segurança nacional e o fim de políticas públicas

renan quinalha

Debate foi feito sexta-feira (30), na Assembleia Legislativa, por iniciativa das comissões nacional e estadual da Verdade

São Paulo – A ditadura, além de interromper projetos de alfabetização e ensino, procurou inserir a doutrina de segurança nacional por meio da educação, constatam acadêmicos. E os problemas não acabaram com o fim do período autoritário – alguns, por sinal, já existiam antes. Mas no período que antecedeu o golpe havia ao menos uma discussão em curso sobre novas possibilidades para a educação brasileira. “Existia uma potencialidade de desenvolvimento de um modelo de ensino de qualidade para todos”, observa a pesquisadora Silvana Souza, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), uma das participantes de debate realizado na última sexta-feira (30), na Assembleia Legislativa de São Paulo, por iniciativa das comissões nacional e estadual da Verdade.

Segundo ela, em algum momento, antes de 1964, o pensamento liberal clássico aproximou-se das iniciativas populares. A pesquisadora identifica “alguma compatibilidade” entre as bandeiras liberais e os modelos democrático-populares. Pensava-se em um projeto de país, em um sistema que reduzisse a desigualdade. “Não só democracia na gestão, mas equânime para toda a população. Isso foi interrompido. A reforma educacional que ocorreu no país foi econômica. Foi um modelo de expansão da escola precária, barata.”

O ensino também sofreu as consequências da ideologia da caserna. O professor Cleber Santos Vieira, do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), afirma que algumas disciplinas contribuíram para difundir a doutrina de segurança nacional, tornando-se um instrumento de controle social. Caso da Educação Moral e Cívica, cujo ensino tornou-se obrigatório a partir de 1969. “Houve uma instrumentação dessa disciplina”, diz o professor.

Ele destaca ainda ainda uma “triagem ideológica” em curso nas instituições de ensino. E cita documentos nos quais autoridades recomendam a não contratação de uma professora, serviços de inteligência alertam para o “perigo” da infiltração intelectual nas universidades e um pedido de informação feito por uma instituição a respeito do posicionamento ideológico de alguns professores.

De certa forma, a remodelação do ensino e dos valores transmitidos em sala de aula teve origens no meio militar. O professor José Antonio Sepulveda, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), foi pesquisar a Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1949 e de onde saíram quatro futuros presidentes da República. Encontrou ali o conceito de “regeneração moral” do positivismo. “A ideia era transformar a escola no Brasil numa caserna”, avalia. “Na carta de princípios (do general Idálio Sardenberg) já fica claro o objetivo de intervenção na sociedade, de atuar dentro do Estado.”

Segurança nacional

A “regeneração moral” teria de se dar pela via educacional, e isso só poderia ocorrer por meio de uma disciplina: a Educação Moral e Cívica. Para o professor, a EMC contribuiu para o processo de divulgação da doutrina de segurança nacional “de um caráter que ainda não foi definitivamente estudado”. Ele é autor da tese O Papel da Escola Superior de Guerra na Projeção do Campo Militar sobre o Campo Educacional, apresentada em 2010.

O Decreto-lei 869, de 12 de setembro de 1969, criou a Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC), que seria responsável pela implementação do ensino de Educação Moral e Cívica. Na tese, Sepulveda observa que a CNMC “dividia espaço” com o Conselho Federal de Educação e fazia “enfrentamento político” com pessoas de tendências liberais. A comissão também dava assessoria ao Ministério da Educação na aprovação de livros didáticos, “sob o ponto de vista moral e cívico”.

Outro participante do debate, o professor de História Wagner da Silva Teixeira, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), abordou iniciativas na área educacional que foram interrompidas ou descaracterizadas pela ditadura: o Movimento de Cultura Popular (MCP) de Pernambuco, o projeto De Pé no Chão também se Aprender a Ler, no Rio Grande do Norte, o Movimento de Educação de Base, desenvolvido pelo Igreja, e os Centros Populares de Cultura (CPCs). “Esses movimentos já eram criticados antes do golpe. E a repressão, logo depois, foi rápida e brutal”, observa.

A pesquisadora Silvana Souza, da Unioeste, questiona o senso comum de que antes de 1964 o ensino era de qualidade. O que havia, acrescenta, era algumas escolas de excelência. “Você não pode dizer que era educação de qualidade. Era para alguns, portanto privilégio.” No Brasil, desenvolveu-se desde então uma lógica econômica, “no sentido de fazer economia mesmo”, no campo educacional. “Educação é processo. Se você quer qualidade, tem de investir no processo, não no produto. É preciso repensar espaços, currículo, formação, tempo, infraestrutura.”