Comemorado em 757 cidades, Dia da Consciência Negra mostra avanços

Políticas afirmativas como cotas em universidades trouxeram oportunidades, mas a superação da desigualdade e da discriminação racial ainda exige enfrentamento de desafios

Lei 10.639 de 2003, que prevê o ensino de história e cultura africanas nas escolas, precisa caminhar muito para que seja completamente implementada (Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil)

O Brasil celebra nesta sexta-feira (20) o Dia da Consciência Negra. A data, que vem ganhando status de feriado a cada ano em mais lugares, tem eventos em 757 municípios, segundo levantamento da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). A morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, é o mote para a reflexão acerca dos problemas que afetam o cotidiano dos negros ainda hoje, mais de um século depois da abolição da escravatura.

No geral, a avaliação é de que a desigualdade racial tem se amenizado nos últimos anos, mas a passos lentos e com progressos que não são equilibrados entre as diversas áreas. Na educação, por exemplo, há avanços em políticas afirmativas, em especial na instituição de cotas para o ingresso em universidades.

 Ainda sem determinação legal, uma vez que a lei específica tramita no Congresso Nacional há dez anos, a medida foi implementada em dezenas de universidades públicas e, em alguns casos, a presença de negros passou de 2% para 30% da comunidade discente.

Eduardo Alves da Silva, 25 anos, faz parte dessa geração de cotistas. Estudante do último semestre de Pedagogia da Universidade de Brasília (UnB), ele é o primeiro da família a ingressar no ensino superior. Morador de Planaltina, cidade satélite do Distrito Federal com alto índice de homicídios de jovens negros, Silva sobreviveu às discriminações sofridas na escola. “Pessoalmente, o sistema de cotas não só significa uma contribuição fundamental para meu ingresso na universidade, como para a minha identidade e autoestima”, conta Eduardo.

O acesso à graduação, no entanto, ainda não significa a redução da desigualdade racial nos quadros de professores das universidades. Paulino de Jesus Francisco Cardoso, pró-reitor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), entende que é hora de garantir o acesso dos negros à pós-graduação, passo imprescindível para assegurar o aumento da presença entre os docentes.

Nos ensinos fundamental e médio, os problemas também estão longe da solução. Dados do Observatório da Equidade da Secretaria do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social mostram que a queda na evasão escolar não tem garantido a redução na diferença entre o número de negros ou pardos e brancos.

Mais que isso, a Lei 10.639 de 2003, que prevê o ensino de história e cultura africanas nas escolas, precisa caminhar muito para que seja completamente implementada. O Ministério da Educação (MEC) e a Seppir elaboraram no ano passado um plano para acelerar a aplicação das medidas, mas muitos estados e municípios ainda não regulamentaram a lei.

Educadores negros e negras de todo o país chegaram a cobrar a suspensão no repasse de verbas para aqueles que não cumprem a medida, mas o MEC avalia que o corte poderia prejudicar o diálogo com as prefeituras. O professor da Universidade de São Paulo (USP) Kabengele Munanga considera as leis na área do ensino avanços importantes, mas alerta para o fato de continuarem sendo um ponto de partida.

“Muitos meios educativos resistem, acham que o governo está criando falsos problemas. É a ideia de que nossa cultura e história são mestiças e por isso não é preciso estudar a história do negro e da África. Estudar já seria uma racialização do Brasil. Essa resistência atrasa o processo”, ressalta Kabengele.

A resistência atrasa o processo em outros campos. Ainda que 12,6 milhões de pardos e negros tenham ingressado no mercado de trabalho entre 2007 e 2008, há uma enorme diferença nos salários. O vencimento médio dos homens brancos em todo país equivalia, em 2006, a R$1.164,00, valor 53% maior que a remuneração obtida pelas mulheres brancas, que era de R$ 744,71. O rendimento dos homens brancos era ainda 98,5% superior ao dos homens negros e pardos, que era de R$ 586,26, e 200% maior que o rendimento das mulheres negras.

Paulino de Jesus Francisco Cardoso, pró-reitor da Udesc, lembra que, entre as 500 maiores empresas do Brasil, apenas 3% dos cargos gerenciais são preenchidos por negros e o percentual é baixo mesmo entre as funções que exigem menos escolaridade. “As empresas sabem muito bem que as melhores são aquelas cuja equipe de colaboradores reflete a diversidade populacional existente na comunidade em que está. No Brasil, as empresas não têm implementado políticas”, destaca.

Passos à frente

Sônia Maria do Nascimento, vice-presidente do Instituto Geledés, milita há décadas em torno da questão e reconhece os avanços. A criação da Seppir, em 2003, é vista como um dos principais passos à frente nos últimos anos. Atrelados ao trabalho da secretaria vieram outros progressos, como a articulação com outros ministérios para garantir atendimento específico na área de saúde para doenças às quais os negros estão mais suscetíveis.

A Seppir vai aproveitar as celebrações em Salvador (BA) para entregar a titulação de terras a 3.600 famílias quilombolas. O presidente Lula estará na capital baiana para assinar 29 decretos que garantem 335 mil hectares a quilombos de 14 estados. Além disso, será lançado o Selo Quilombola, marca que será atribuída aos produtos artesanais feitos nas comunidades remanescentes.

Sônia Maria do Nascimento entende que as ações do governo federal estão corretas, afirmando que uma vez que a exclusão foi institucional, promovida pelo Estado, a reparação também deve ser. “No Brasil, se você tem cor, não interessa a competência. Você conta nos dedos das mãos as exceções. E quando tem alguém, fazem questão de invisibilizar a raça, a cor da pessoa. Não deixam nossa comunidade ter heróis”.

Um levantamento divulgado esta semana pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostra que as disparidades no mercado de trabalho vêm caindo gradualmente, mas as desigualdades persistem. Apesar de representar 36,6% da população economicamente ativa, os negros respondem por 43,7% da taxa de desemprego. Além de entrarem mais cedo e permanecerem por mais tempo no mercado de trabalho, os negros não desfrutam dos mesmos benefícios garantidos aos não-negros, a começar pelo salário.

Para Maria Júlia Nogueira, Secretária Nacional de Combate ao Racismo da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a grande dificuldade para vencer o preconceito passa pelo falso mito de democracia racial construído no Brasil. “Na prática se constata que não existe democracia racial no Brasil coisa nenhuma. Os negros saíram das senzalas para os porões, para os fundos das casas. Então ainda existe muito preconceito”, afirma.