Carandiru: policiais entraram gritando, quase passando por cima das autoridades

“Não precisa ser estrategista para saber que colocar a Rota lá dentro não ia dar certo”, disse uma testemunha (Foto: Marcelo Camargo. Agência Brasil) São Paulo – O Tribunal do […]

“Não precisa ser estrategista para saber que colocar a Rota lá dentro não ia dar certo”, disse uma testemunha (Foto: Marcelo Camargo. Agência Brasil)

São Paulo – O Tribunal do Júri ouviu na tarde de hoje (15) três testemunhas do massacre do Carandiru, ocorrido em outubro de 1992, quando o Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Estado, na zona norte de São Paulo, foi invadido pela polícia sob o pretexto de conter uma rebelião, o que resultou na morte de 111 detentos, de acordo com os números oficiais. O depoimento mais contundente da tarde foi o do agente penitenciário Moacir dos Santos, que estava no comando do presídio naquele dia e teria presenciado a entrada truculenta dos policiais da Rota, que pelo seu relato gritavam e atiravam feito loucos, quase passando por cima das autoridades. Pela manhã, a primeira testemunha ouvida revelou que o número de mortos representava o dobro do divulgado. O julgamento de 26 policiais militares, realizado no Fórum Criminal da Barra Funda, zona oeste, é o primeiro de uma série de quatro que ocorrerão neste ano sobre esse caso.

Moacir dos Santos, que atuava como diretor da Divisão de Disciplina, contou que naquela tarde estava havendo um acerto de contas entre facções do presídio, e, portanto, eles não estavam rebelados contra o sistema. Para ele, as 13 armas encontradas não pertenciam aos presos. “Se eles tivessem armas teriam usado”, afirmou. Moacir disse que foi negociar com os presos quando viu que a situação estava fugindo ao controle, que havia depredação, então, acionou o alarme. Ele falou ao júri que era favorável à invasão, mas, como a polícia já tinha a informação de que não havia reféns, não era preciso mandar a Rota. “Não precisa ser estrategista pra saber que colocar a Rota lá dentro não ia dar certo.”

Segundo o agente penitenciário, nenhuma autoridade impediu o massacre. Pelo depoimento, o coronel Ubiratan Guimarães, comandante da PM, ficou frustrado com o que estava acontecendo, mas também entrou. Presos feridos que iam se entregar foram mortos, sob o testemunho de Moacir dos Santos. “Eles tentavam se entregar, quando foram fuzilados.”

Ele contou que fez o relatório de todos os corpos e que apenas oito tinham ferimentos de arma branca, e apenas esses poderiam ter sido feridos na briga interna. “O restante foi morto por bala”, observou. Moacir não contestou o número oficial de 111 mortos. “Não tem como esconder preso no sistema”, garantiu aos jurados. O agente afirmou também que não havia intenção dos presos de invadir o Pavilhão 8, e que isso não era possível. A suposição de invasão tem sido usada pela advogada de defesa dos policiais, Ieda Ribeiro de Souza.

Moacir disse também que presos que retiravam os corpos das celas também foram mortos. E que feridos levados para o Pavilhão 4, onde ficava o ambulatório, também foram mortos. 

As outras duas testemunhas da tarde eram detentos à época. Um deles, Luiz Alexandre de Freitas, ainda é. Ele disse que foi ferido por uma baioneta na perna quando já estava entre os corpos dos mortos. Os policiais teriam o furado. “Eu estava com o sangue tão quente que não tive reação”, disse. Hoje, em cima de uma cadeira de rodas, ele é portador do vírus HIV, que afirma ter contraído por causa do sangue derramado naquela tragédia. Ele olhou para o banco dos réus, onde estavam 24 dos 26 acusados, e apontou para um deles, conhecido como Japonês, e disse: “Este homem falou pra eu sair dali porque eu parecia com o filho dele”.

Marco Antônio de Moura, hoje livre, relatou que levou um tiro no pé e se fingiu de morto para sobreviver. Segundo seu depoimento, antes de atirar em todos que estavam na cela dele, um policial colocou o rosto na porta de aço por onde entra a comida e foi possível notar que ele tinha olhos azuis.

Além dos promotores Fernando Pereira da Silva e Marcio Friggi, os jurados também fizeram questionamentos aos juiz José Augusto Nardy Mazagão, como o fato de os corpos dos mortos estarem nus, o que indicaria que foram executados após a rendição.

Cena do crime

O agente Moacir dos Santos lembrou que a cadeia entrou em conflito entre 14h30 e 15h. Por volta das 17h, os militares entraram e às 19h já se sabia quantos corpos estavam lá. Ele e outras autoridades entraram no pátio, mas só tiveram acesso aos pavimentos por volta das 23h. “Nesse tempo todo os policiais ficaram alterando a cena do crime”, acusou.

Ele relatou que saíram três viaturas (bonde, caminhão que transfere presos) e depois disso ele encontrou outros mortos. Por volta das 3h, Moacir dos Santos foi fazer rescaldo e encontrou em uma cela trancada 11 mortos e mais dois mortos no pavilhão, tudo isso depois que os outros tinham saído da casa de detenção. “As autoridades ficaram debatendo pra ver como tirariam os corpos despistando as famílias e a midia”, lembrou.

“O governador já tinha autorizado a visita pro dia seguinte, e eu recebi autorização do juiz pra encaminhar esses mortos pro Pavilhão 4”, disse acrescentando que acredita que aqueles corpos restantes foram esquecidos.