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Ação social da Fiocruz oficializa requalificação civil de 65 pessoas no Rio

Beneficiados tiveram documentos de identidade retificados nos cartórios, com alteração do nome e do gênero

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Junto com seus parceiros, a Fiocruz obteve sentença judicial para 65 pessoas, entre elas 15 pessoas trans masculinos e 25 trans femininas

São Paulo – O Programa Justiça Itinerante Maré-Manguinhos-Jacarezinho da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) promoveu, no último dia 18, sua segunda ação social de requalificação civil, processo judicial que altera o nome e o sexo declarado nos documentos oficiais da pessoa que tenha solicitado, no campus Manguinhos da Fiocruz. A ação foi realizada por meio da parceria com Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DP-RJ) e a Fundação Oswaldo Cruz.

Ao todo, 65 pessoas obtiveram a sentença judicial que permite a mudança de seus documentos de identidade nos cartórios, retificando nome e gênero – sendo 15 pessoas trans masculinos, 25 trans femininas e 25 não binárias. A atividade é um desdobramento da primeira ação desse tipo que ocorreram em 26 de novembro do ano passado, quando outras 96 pessoas foram atendidas.

A partir do programa, a requalificação civil é obtida através de sentença judicial ou por meio de procedimento em cartório, iniciando a mudança de todos os documentos de identidade, retificando nome e gênero. A documentação obriga os cartórios a alterarem os registros, facilitando e reforçando por lei o reconhecimento judicial das pessoas transgêneras ou não binárias.

A ação também realizou a distribuição da cartilha O que fazer após a decisão que mudou seu nome e gênero?, que apresenta o passo a passo de todos os procedimentos de obtenção dos novos documentos, mudança de certidões, nome, CPF, título de eleitor, mudança de carteira de trabalho, entre outros.

O material foi produzido pelo TransGarçonne, uma ação de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em conjunto com o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis), da Defensoria Pública do Estado (DP-RJ) e o Programa Justiça Itinerante, do Tribunal de Justiça.

Justiça e gênero na Fiocruz

A diretora da Divisão da Justiça Itinerante e Acesso à Justiça, Marinete Tani, reforçou a importância da articulação do programa na luta para o acesso dos territórios de favelas, periferias e áreas rurais à Justiça.

“A Justiça Itinerante como um todo atende em vários locais que não têm muito acesso à justiça, principalmente nas comunidades aqui da capital e no interior onde não tem Fórum. Mas em especial aqui na Fiocruz, com a parceria, a gente está atendendo a requalificação civil da população LGBTQIA+ e para gente está sendo um prazer resolver tanto essa situação psicossocial dessas pessoas, o reconhecimento delas, o respeito; e também proporcionar empregabilidade – porque com essa requalificação elas conseguem se colocar melhor no mercado de trabalho” , disse Tani.

Leonídio Santos, coordenador de Cooperação Social da Fiocruz, comentou sobre o ineditismo da ação. “Nos dois eventos, essa parceria permitiu a requalificação civil para 72 pessoas não binárias, sendo que no Brasil apenas cinco pessoas haviam conseguido até novembro do ano passado. É um feito enorme e devemos isso à rede estabelecida com Tribunal de Justiça e Defensoria Pública, e, por dentro da Fiocruz: ao trabalho de encaminhamento de pessoas ao programa Justiça Itinerante feito Laboratório de Pesquisa Clínica em DST e Aids do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (LapClin-Aids/INI/Fiocruz), da Coordenação-Geral de Infraestrutura (Cogic/Fiocruz), Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), e da coordenação dessa atividade feita pelo Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural (DIHS/Ensp/Fiocruz) e Cooperação Social. Há muito o que celebrar e também muito trabalho a se fazer”, ponderou.

A parceria também envolveu a Prefeitura do Rio, com a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) e a Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro (CEDS) que prestaram apoio e orientação sobre os processos burocráticos para obtenção da documentação, os atendimentos com orientação sobre acesso à Documentação Civil, serviços e benefícios socioassistenciais contemplaram 44 pessoas.

A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) também estava presente no dia, realizando aplicações de vacina contra Covid-19, encaminhamentos para vacinação contra Hepatite, encaminhamentos para testagem de covid-19, teste rápido de sífilis, HIV e Hepatite B, além de prestar orientações sobre tuberculose, infecções sexualmente transmissíveis (IST’s) e tratamento pós exposição e pré exposição ao HIV.

Marco Menezes, diretor da Ensp, enalteceu a organização da iniciativa, que tem parceria do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural.

“O Programa Justiça Itinerante é uma ação fundamental em que juízes, membros do ministério Público e Defensoria Pública vão ao encontro dos cidadãos, principalmente aqueles em condições de maior vulnerabilidade, para garantir o exercício da cidadania e ampliar o acesso à justiça. A Ensp se orgulha em fazer parte dessa iniciativa que reforça a missão da Fiocruz no território de Manguinhos e atua na garantia e proteção dos direitos da população. A Justiça Itinerante Maré-Manguinhos-Jacarezinho é uma atividade que já faz parte do calendário da instituição”.

Mais que números: nomes, trajetórias e lutas

Julia Grola Melo tem 45 anos, é mulher trans e integra a lista de pessoas que receberam sentenças judiciais no último dia 18. Sobre a questão da empregabilidade, Julia destaca a importância da documentação para assegurar direitos.

“Eu sou de uma época que foi mais difícil. Me reprimi durante 20 anos da minha vida para eu poder ter um trabalho, para eu poder ter um apartamento, porque se eu fosse a Julia que sou hoje com 18, 17 anos, fazendo transição, eu não ia conseguir trabalho, eu não ia conseguir estudar. Eu não estaria trabalhando com carteira assinada porque a gente sabe que nas letras LGBTQIA+ é tudo mais difícil.”

Marín Matos tem 28 anos, é morador de Niterói, diretor de arte e integrou o grupo de pessoas que receberam a sentença neste dia. Acompanhado de sua mãe, Geisla Matos, Marín enfatizou a importância da documentação, assegurando por lei a identidade e gênero de todas as pessoas.

“O papel é o que legitima nossa cidadania. Nos desrespeitos e situações que a gente vive no dia a dia como pessoas trans, no final do dia, o que a gente tem para justificar nossa existência, infelizmente, é através do papel; infelizmente é o lugar que a gente recorre para receber um tratamento digno no trabalho, nas escolas, no hospital quando você vai procurar algum serviço de saúde, em todos os lugares”.

Marín também comentou sobre a necessidade de iniciativas como essa que reafirmam a existência de pessoas trans e orientam quais os procedimentos devem ser realizados, de forma simples e facilitadora. “Essa ação ajuda a dizer que a gente existe quando todo mundo tem essa sensação vaga de que pessoas trans são menos gente do que a gente é, de fato. A gente reconhece menos as pessoas trans porque a gente não sabe que elas existem”, afirmou ele.