Monocultura avança

Entenda como o porto da Cargill no Pará ameaça terras e quilombos

Construção de terminal provocou “boom” de soja em áreas protegidas; lideranças narram violação de direitos humanos

Pedro Alcântara/M'bóia
Pedro Alcântara/M
De Santarém (PA) saem navios carregados de grãos com destino a China, Reino Unido, Holanda, França, Espanha e Itália

Brasil de Fato – Um imponente terminal portuário destaca-se na paisagem do encontro dos rios Amazonas e Tapajós, em Santarém (PA). A instalação do porto da Cargill, destinada a exportar grãos para chineses e europeus, foi construída sobre um cemitério ancestral indígena do povo Tapajós, os primeiros ocupantes da região.

Enquanto isso, a circulação de grandes navios cargueiros intensifica a formação de ondas fluviais que batem na terra firme e provocam erosão, literalmente submergindo territórios quilombolas, empurrando-os para o desaparecimento.

No Oeste do Pará, as colheitas da soja e do milho que invadem a Floresta Amazônica têm destino certo: o porto da norte-americana Cargill, uma das gigantes do agronegócio mundial.

Indígenas envenenados 

“A Cargill é um símbolo do agronegócio e do desmatamento. O que para o capital é o desenvolvimento, para nós, é atraso”. A fala é da vice-presidente do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (Cita), Auricélia Arapiuns. “É o símbolo de muitos impactos para o povo da floresta e para o povo das águas. A Cargill, para nós, é um símbolo de destruição”. 

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A instalação do porto da Cargill provocou um “boom” de soja e acelerou a invasão dos territórios na região do Baixo Tapajós. A consequência: o desmonte da economia de subsistência baseada na caça, na pesca e na agricultura familiar. Cerca de 12 mil pessoas de 13 povos indígenas foram afetadas direta ou indiretamente pelo empreendimento. 

A mais impactada é a aldeia Açaizal, da Terra Indígena Munduruku e Apiaká, do Planalto Santareno. Lá, a produção de frutas diversificadas é motivo de orgulho para os moradores. Mas a chuva de agrotóxicos envenena não só as plantações, mas também a população humana, que se tornou alvo de uma verdadeira chuva de toxinas. 

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“Hoje nós temos nossos igarapés secos, aldeias sem água, localidades totalmente invadidas pelo agronegócio, por campos de soja e de milho. O rio Tapajós e o rio Amazonas estão sob ameaça”, relata a integrante do Cita.

Para defender os povos indígenas, Auricélia foi estudar direito na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Localizado ao lado do porto da Cargill, o campus também foi construído sobre o cemitério indígena / Tiago Miotto/Cimi

“Antes, a região era um local de famílias trabalharem, um local de lazer para o povo de Santarém. Era um local sagrado para nós, povos indígenas. A Cargill foi construída em cima do nosso cemitério”, relata Auricélia. 

Na mesma área que recebeu o porto da companhia norte-americana, está um dos maiores sítios arqueológicos da região, que foi parcialmente destruído pela obra. Segundo a associação Terra de Direitos, há vestígios de ocupação pré-colombiana do território de cerca de 10 mil anos atrás.

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A construção do porto da Cargill foi iniciada em 1999, mirando originalmente o transporte de grãos produzidos em Mato Grosso, mas acabou estimulando a produção às margens da BR-163, que liga Santarém ao Rio Grande do Sul, cruzando o Centro-Oeste, o Sudeste e o Sul brasileiros.

O estudo “Sem licença para a Cargill”, produzido pela Terra de Direitos, indica que 90% das áreas na beira da rodovia mudaram de proprietário entre 2000 e 2005, principalmente na região mais próxima à instalação portuária. 

Mapa mostra localização das comunidades tradicionais prejudicadas / Reprodução / “Sem licença para destruição” / Terra de Direitos

“A Cargill não fez nenhum tipo de consulta com os povos indígenas, invadiu nosso território passando por cima dos nossos direitos, dos nossos locais sagrados, passando por cima de Santarém, que era, originalmente, uma aldeia do povo Tapajós. A cidade veio se instalar passando por cima de todos os direitos humanos. Hoje, tentam esconder a verdadeira história de Santarém”, denuncia Auricélia.

Quilombos submersos 

Em Santarém – a segunda maior cidade do Pará -, 12 comunidades quilombolas localizadas em regiões de várzea ou de terra firme dependem da pesca para sobreviver. Seja para venda ou para subsistência, a atividade garante alimentos, roupas e outras necessidades básicas para cerca de 300 famílias. Mas tudo isso está ameaçado pela circulação de grandes embarcações que fazem o transporte das commodities

“Os grãos vão caindo das embarcações, e os peixes acabam se alimentando disso. E tem o impacto negativo no sabor do peixe, na pele. O peixe, de um modo geral, passa a ter um outro tipo de sabor, não mais o que era anteriormente, quando eles viviam em águas límpidas e se alimentavam apenas de frutas”, relata o coordenador da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém, Mário Pantoja. 

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As comunidades já estão acostumadas com as “terras caídas”, um processo natural de erosão das margens dos rios provocado pela dinâmica das cheias. Mas a agitação provocada pela circulação de grandes embarcações acelerou o fenômeno. Hoje, as águas se aproximam cada vez mais dos territórios quilombolas. 

“As ondas batendo nesses paredões das terras de várzeas acabam criando esse impacto, trazendo as consequências da ‘terra caída’. Com isso, as ilhas vão reduzindo de tamanho. As terras reduzem e a população vai ficando aglomerada”, explica o líder quilombola. 

“Terras caídas”: fluxo das embarcações aumenta a agitação das águas, que engolem territórios quilombolas (imagem ilustrativa) / Divulgação/Rozinaldo Garcia/Prefeitura Municipal de Santarém

Descendente dos primeiros habitantes da região, Pantoja critica a falta de consulta prévia às populações quilombolas e o avanço do agronegócio. “O Murumuru, que é o quilombo em que eu moro, surge em 1834 ou 1835. Quem é que tem prioridade aqui? Era para sermos nós. Mas acontece que o governo, de modo geral, não avalia dessa forma. Ele avalia que o que prevalece hoje é o fator financeiro, e não a vida humana”, resume. 

Cercados pela soja

O processo de desmonte dos modos de vida de indígenas, quilombolas e pequenos agricultores provocado pela instalação do porto da Cargill está descrito em detalhes no estudo elaborado pela organização Terra de Direitos, que faz assessoria jurídica a organizações populares e movimentos sociais da região do Baixo Tapajós. 

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“A especulação sobre o início da instalação do porto, por volta do ano 2000, já atrai os fazendeiros que vêm principalmente da região Sul e de Mato Grosso”, explica Pedro Martins, coordenador do Programa Regional Amazônia da Terra de Direitos.

“Eles começam a adquirir as terras, e os agricultores familiares são surpreendidos com a proposta de dinheiro em mãos, que poderia garantir para eles uma vida melhor. Mas, na verdade, eles foram empurrados para fazer essas vendas, fortemente assediados”.

Josenildo Munduruku, cacique da Aldeia Açaizal, caminha sobre plantação de soja dentro da Terra Indígena Munduruku e Apiaká do Planalto Santareno / Bárbara Dias/Cimi

Com as propriedades nas mãos dos sojeiros, restou aos pequenos produtores se mudarem para comunidades mais distantes ou para a área urbana. 

“Eles começaram a migrar dessas comunidades para os bairros mais periféricos de Santarém. Algumas famílias são atraídas pelo dinheiro e outras são expulsas quando ficam cercadas pela soja. Ocorre então a perda dos laços comunitários em função das péssimas condições de moradia, várias cercadas pelo veneno. Algumas comunidades foram desaparecendo”, descreve Pedro Martins.

Fraudes, lucro e omissão 

A Terra de Direitos identificou um longo rol de desrespeito a leis federais e tratados internacionais. Segundo a organização, a atuação da Cargill na região é cercada de acusações de fraudes no licenciamento ambiental, de descumprimento dos compromissos assumidos com órgãos ambientais e, principalmente, de violação aos direitos humanos.

Sem um estudo de impacto ambiental, povos indígenas, quilombolas e pescadores artesanais foram privados dos recursos naturais essenciais aos seus modos de vida. Tudo isso sem consulta prévia, ao contrário do que determina diretriz da Organização Internacional do Trabalho transformada em lei no Brasil. 

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“A secretaria estadual do Meio Ambiente e Sustentabilidade não vem respeitando os parâmetros do respeitos aos direitos étnicos. É uma atitude reiterada do governo do Pará. E a Cargill se fundamenta nessa omissão do estado para ampliar ilegalmente direitos”, afirma Martins.

Terminal da Cargill divide espaço com pequenas embarcações pesqueiras / Pedro Alcântara/M’bóia

Embora graves, as acusações não parecem afetar o sucesso nos negócios. Segundo a agência Reuters, as atividades em solo brasileiro renderam à empresa lucro de R$ 2,1 bilhões em 2020. A cifra é cinco vezes maior do que o resultado do ano anterior.

Sem resposta

Os questionamentos aqui levantados foram enviados às assessorias de imprensa da Cargill e do governo paraense, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem. 


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