Contra retrocessos

Lideranças criam Parlamento Indígena do Brasil e pedem saída do presidente da Funai

Marcelo Xavier foi alvo da primeira decisão do Parlaíndio por ser signatário do pedido para investigar Sônia Guajajara

Divulgação/Apib
Divulgação/Apib
Lideranças queimam foto do presidente da Funai após episódio de repressão à manifestação indígena em Brasília

Brasil de Fato – Mais de um milhão de pessoas, dividas em 305 povos falantes de mais 180 línguas. Esses são os brasileiros que o recém-criado Parlamento Indígena, o ParlaÍndio, tem o potencial de representar. Sem vínculo formal com o estado brasileiro, a iniciativa se apresenta como uma nova via de articulação dos povos originários, mirando a superação dos crescentes ataques estimulados pelo governo Jair Bolsonaro, como o Marco Temporal, tese jurídica que restringe a demarcação de terras indígenas, e o Projeto de Lei (PL) 490, que abre áreas protegidas à mineração, ao agronegócio e à construção de hidrelétricas. 

Como primeira deliberação, o Parlaíndio decidiu pedir na Justiça a exoneração do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, visto por lideranças como um executor das políticas anti-indígenas de Bolsonaro.

Com apoio da embaixada da França no Brasil e da Fundação Darcy Ribeiro, a organização é resultado da união de forças de lideranças de alcance mundial.

Ainda em 2016, a ideia partiu do Cacique Raoni Metuktire, atual presidente de honra do Parlamento Indígena, mas saiu do papel só no final de maio deste ano. Entre os fundadores, também está Davi Kopenawa Yanomami, xamã e porta-voz do povo Yanomami.

Eles querem nos calar, nos intimidar para que a gente não continue mostrando à sociedade onde o governo está ferindo e destruindo o nosso povo.

(Almir Suruí)

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Perspectiva de crescimento

O coordenador executivo do ParlaÍndio, cacique Almir Suruí, do povo Paiter Suruí de Rondônia, aposta em um crescimento rápido, de forma a aumentar a representatividade nacional. “O Parlaíndio tem a missão de unificar essas lutas, defender políticas públicas para todos os indígenas, a demarcação de territórios e a proteção territorial”, enuncia. 

Ainda em fase embrionária, a iniciativa reúne cerca de 20 representantes de povos de todo o país que participam de reuniões virtuais mensais, entre eles Francisco Piyãko Ashaninka, Kretã Kaingang, Daniel Munduruku, Édson Kayapó e Eliane Potiguara. Com o fim da pandemia, a expectativa é promover encontros presenciais.

Além de subsidiar os parlamentares do Congresso Nacional ligados à causa indígena, o ParlaÍndio quer ajudar a viabilizar a sobrevivência das comunidades, com a elaboração de planos gestão territorial, cultural e econômica.

“Não haverá apoio a nenhum governo, seja quem for. Vamos acompanhar se está estão sendo bem implementadas politicas públicas que garantam os nossos direitos”, diz o cacique.  

Liderança reconhecida internacionalmente, o coordenador do ParlaÍndio entrou na mira do Funai por fazer críticas ao governo federal / Foto: Gabriel Uchida / Kanindé

Todos contra uma 

A Câmara dos Deputados não é um ambiente convidativo aos povos originários. Poderosa, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) hegemoniza as discussões e coloca a principal instância legislativa brasileira sob influência direta dos ruralistas. 

Segundo o site da FPA, a Frente tem 241 deputados membros e outros 39 no Senado. O “lobby” de lideranças indígenas é insignificante, se comparado ao exercido pelos promotores do desmatamento. Atualmente, o total de parlamentares indígenas se resume a uma: Joenia Wapichana (Rede-RR). 

O nosso parlamento ajuda a destravar a luta dos povos indígenas no Brasil para que a gente possa chegar a instâncias internacionais, quando nós não temos uma resposta positiva dentro do Brasil.

(Telma Taurepang)

Sozinha na Câmara, Joenia virou alvo da deputada Bia Kicis (PSL-DF) durante a sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) que terminou com a aprovação da tramitação do PL 490.

Presidente da CCJ, a bolsonarista impediu a indígena de falar por diversas vezes e ainda vetou a presença de representantes dos povos originários na sessão

“Tudo se torna difícil para as mulheres indígenas quando se fala em politica partidária”, afirma, com base em experiência própria, Telma Taurepang. “Muitas vezes nos olham com discriminação, como foi o olhar para Joenia Wapichana durante a votação”.

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Moradora da Terra Indígena Araçá, ela concorreu ao Senado nas últimas eleições e alega não ter recebido apoio partidário. “Todo o recurso foi direcionado para uma outra candidatura. Fiz minha campanha com 4 mil reais e mesmo assim tive uma votação expressiva.”

Para a liderança, o aumento da participação dos povos originários na política partidária institucional passa por melhorar a divisão dos recursos, bem como a distribuição de urnas eletrônicas nos territórios indígenas.

“Temos essa desigualdade social desenfreada tentando a todo o tempo deslegitimar os cidadãos de bem que são os povos indígenas”, lamenta. 

Com a criação do ParlaÍndio, Telma se tornou a primeira mulher a entrar na organização. “O nosso parlamento ajuda a destravar a luta dos povos indígenas no Brasil para que a gente possa chegar a instâncias internacionais, quando nós não temos uma resposta positiva dentro do Brasil.”

Primeira mulher no ParlaÍndio, Telma Taurepang é coordenadora da União de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB) e parceira da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) / Acervo pessoal

‘Fundação de Intimidação do Índio’

Em abril deste ano, o coordenador do Parlamento Indígena e a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas (Apib), Sonia Guajajara, foram alvos de inquéritos abertos pela Polícia Federal (PF) a pedido da Funai. A acusação: difamar o governo federal. 

“Para mim [o pedido de inquérito] foi uma surpresa saindo da Funai. Se fosse pelo governo, pela estrutura do governo, a gente sabe que o atual governo é anti-indigena. Então, se eles fizeram essa perseguição, é porque estamos falando a verdade”, diz Almir Suruí.

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“Eles querem nos calar, nos intimidar para que a gente não continue mostrando à sociedade onde o governo está ferindo e destruindo o nosso povo. Mas a luta continua. Ninguém vai nos calar. Estamos nos fortalecendo, trabalhando com a consciência tranquila”. 

A solicitação da abertura de inquérito terminou arquivada pela PF por falta de bases jurídicas, mas gerou preocupação com a possibilidade do estabelecimento de um perigoso precedente. Signatário do frustrado pedido de investigação, o presidente da Funai se tornou objeto da primeira decisão aprovada pelo ParlaÍndio. 

“A gente vai entrar com uma ação pedindo a saída do Marcelo Xavier. Primeiro porque a historia de atuação dele com povos indígenas já é ruim. E, depois esse ataque com nossas lideranças, a gente achou que poderiam vir outros com mais lideranças. Por isso a gente achou por bem reagir através dessa medida jurídica”.

A saída do presidente da Funai também virou reivindicação dos indígenas do acampamento “Levante pela Terra” em Brasília.

Mobilizados desde o início do mês, o grupo lançou a palavra de ordem “Fora, Marcelo Xavier da Funai” após serem atacados pela Polícia Militar (PM) enquanto faziam um protesto em frente à Fundação. Em carta aberta, o “Levante” chamou a Funai de “Fundação da Intimidação do Índio”.

Unidade 

O Brasil já tem uma organização destinada a representar os interesses nacionais dos povos indígenas. É a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), coordenada por Sônia Guajajara, candidata à vice-presidência pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2018 em chapa encabeçada por Guilherme Boulos. 

“O ParlaÍndio não vai concorrer por nenhum espaço político com organizações que já representam os indígenas, por exemplo a Apib e outras organizações estaduais”, garante o coordenador executivo do ParlaÍndio.

“Nosso objetivo é juntar forças, juntar as organizações para fortalecer cada vez mais a defesa dos nossos territórios. Para mim isso está bastante claro”.

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Composta por sete entidades regionais que abrangem todo o território brasileiro, a Associação está à frente do “Levante pela Terra”, que reúne cerca de mil lideranças de mais de 40 povos em Brasília. A mobilização tem organizado protestos ruidosos contra o PL 490 e a aprovação do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF). 

“Não há representantes diretos da Apib no ParlaÍndio. Mas tem lideres que fazem parte da coordenação executiva da Apib dentro do Parlamento, como Kretã Kaingang, do sul. Acho que no futuro todo mundo vai entender e aderir à nossa iniciativa. É isso que desejamos”, finaliza Almir. 

Outro lado 

Procurada pelo Brasil de Fato, a Funai afirmou que tem adotado medidas práticas de apoio à população indígena, como entrega de cerca de 700 mil cestas básicas. Acusou ainda governos anteriores de terem feito indígenas de “massa de manobra” e promovido políticas indigenistas pautadas por “interesses escusos” e “falta de transparência”.

“Contrária a tudo isso, a Nova Funai tem sua atuação pautada na legalidade, segurança jurídica, pacificação de conflitos e promoção da autonomia dos indígenas, que devem ser, por excelência, os protagonistas da própria história”, diz o comunicado enviado pela assessoria de comunicação. 

A autarquia criticou ainda a atuação de organizações não-governamentais e ressaltou estar aberta ao diálogo. “A Funai reitera que está, sim, a serviço dos indígenas. Desde o início de sua atuação como presidente da Funai, Marcelo Xavier sempre esteve aberto ao diálogo com as comunidades indígenas.”


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