Coração quente, cabeça fria

Celebrações pelos 100 anos de Dom Paulo começarão com exposição na Assembleia

“Não temos que nos nivelar nos ódios”, pede o ex-ministro José Gregori

Douglas Mansur
Douglas Mansur
Dom Paulo (com presente que recebeu de detidos no Presídio Tiradentes): atuação pelos direitos humanos e maior presença da Igreja na cidade

São Paulo – No dia em que completaria 99 anos, ontem (14), Dom Paulo Evaristo Arns foi tema de live para anunciar o início das celebrações pelo seu centenário. E o primeiro evento será uma exposição na Assembleia Legislativa paulista, de 1º de março a 28 de abril. Segundo a jornalista e biógrafa Evanize Sidow, uma nova versão da exposição aberta em 2018 está sendo repensada, no momento em que “a democracia sofre muito”. O evento foi transmitido na página do jornalista Juca Kfouri no Facebook.

Evanize e Marilda Ferri, autoras de biografia relançada em 2017, serão as curadoras. Juntamente com Maria Angela Borsoi, ex-secretária do arcebispo, que morreu em 14 de dezembro de 2016, aos 95 anos. O artista Eduardo Kobra fará um mural de Dom Paulo. A ideia, ainda em estudo, é vender a obra, em partes, destinando os recursos para as atividades da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, coordenada pelo padre Júlio Lancellotti.

Novas práticas

O atual cardeal-arcebispo, Dom Odilo Scherer, disse que Arns “viveu num contexto de história da Igreja muito interessante”, o período imediatamente posterior ao Concílio Vaticano II. “Dom Paulo procurou traduzir o Concílio em práticas eclesiais novas.” Práticas ligadas, lembrou, “à necessidade de uma nova presença da Igreja em todas as áreas da cidade”. Ele destacou o “grande apoio à população mais pobre”, ajudando também o povo a tomar posições políticas.

Outra fato bastante lembrado foi o projeto Brasil: Nunca Mais. O livro que denunciava de forma inédita e meticulosa a tortura no país foi lançado em 1985. Um dos principais apoiadores foi o Conselho Mundial de Igrejas, conforme lembrou o sociólogo Anivaldo Padilha. Ele trabalhava em Genebra, sede da entidade, quando o projeto foi concebido. E lá se encontrou com Arns.

Superação, e não arroubo

Padilha aponta três dimensões ao movimento ecumênico: a unidade entre cristãos, a promoção da unidade entre a humanidade e o diálogo fraterno entre as religiões. “Creio que essas três dimensões estiveram visivelmente presentes nas ações de Dom Paulo”, observou.

Aos 90 anos, o ex-ministro da Justiça e ex-presidente da Comissão Justiça e Paz José Gregori ressaltou o caráter firme, porém conciliador, de Dom Paulo, com quem trabalhou. “Apesar de toda descrença que existe historicamente, o Brasil está sempre com a rosa dos ventos apontada para o bem, a conciliação, a multiplicidade de visões, desde que exista essa unidade, que Dom Paulo conseguiu estabelecer”, afirmou Gregori. Hoje, ele é integrante da Comissão Arns de direitos humanos.

“Em todos os anos de convivência, nunca vi Dom Paulo disposto a um acerto de contas, mas à superação”, disse ainda. Gregori via no cardeal um “santo em ação”, que agora estaria coordenando hospitais e tentando conscientizar sobre a pandemia.  “Não temos que nos nivelar nos ódios. Provocação só ajuda os nossos adversários. Não é pelo arroubo, pelo espalhafato, pelo ódio que se vai fazer o Brasil feliz”, acrescentou o advogado. Pedindo, como Dom Paulo, “coração quente, cabeça fria, coragem”.

“Grande comunicador”

A jornalista britânica Jan Rocha lembrou que Dom Paulo ajudou a furar o bloqueio de informações imposto pela ditadura. “Por causa da censura era muito difícil conseguir informações, saber o que realmente estava acontecendo no Brasil”, comentou a ex-correspondente da BBC. O cardeal “abriu a Cúria” aos jornalistas e tornou-se importante fonte de notícias.

“Era um grande comunicador e um grande ser humano”, afirmou Jan, destacando ainda a participação do religioso na criação do Conselho Indigenista Missionário e da Comissão Pastoral da Terra, ainda durante os anos 1970. Ela lançou recentemente o livro Solidariedade não tem Fronteiras (editora Expressão Popular), sua versão do Clamor, o comitê de auxílio a refugiados políticos. O prefácio é do ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980.


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