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Vida de LGBTs no cárcere inspira trabalho de encerramento de curso de jornalismo

Pesquisa resultou no livro Transviados no Cárcere, que mostra as condições de vida, a resistência, o sofrimento e as histórias de vida da população LGBT nos presídios

arquivo pessoal

Felipe Sakamoto (à esq.) e Lucas Cabral na defesa do trabalho que eles pretendem publicar por uma editora em breve

São Paulo – Sensibilidade, paciência, cuidado, persistência e empatia moveram os estudantes de jornalismo Felipe Sakamoto e Lucas Cabral para escrever o livro Transviados no Cárcere, que relata a precariedade, a resistência, o sofrimento e as histórias de vida da população LGBT – sigla para lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis e outras identidades de gênero – em presídios de São Paulo e Minas Gerais. A obra, dividida em capítulos temáticos, foi apresentada como trabalho de conclusão de curso na Faculdade Cásper Líbero, no início de dezembro.

Os jovens contam que o ímpeto para realizar a tarefa surgiu primeiro do contato com o livro Presos que Menstruam, da jornalista Nana Queiroz. “Ali ela esboça um pouco as narrativas de mulheres lésbicas e homens transexuais nos presídios, mas eu sempre ficava me perguntando: ‘E aí, como que é? Como que LGBTs se organizam e sobrevivem dentro desses espaços?’ Foi quando acendeu uma luzinha de que eu gostaria de trabalhar este tema”, diz Cabral.

Os dois não estudavam na mesma turma, mas os professores os reuniram ao conhecer as ideias de um e de outro. Para contar as muitas histórias que compõem a obra foram necessárias 67 horas de trabalho dentro dos presídios, além do apoio, tanto de professores, como da universidade e de organizações que auxiliaram no ingresso dos estudantes nas unidades prisionais. “A gente queria trazer uma pauta nova sobre a temática LGBT. Vemos muitas pautas sobre preconceito na cidade, sobre mercado de trabalho para homossexuais e a gente queria fazer uma coisa nova, com aprofundamento”, explicou Sakamoto.

Os agora recém-formados jornalistas visitaram dois Centros de Detenção Provisória (CDPs) e a Cadeia Feminina de Santana, em São Paulo. Também fora ao presídio de Vespasiano, em Minas Gerais, onde puderam conhecer os aspectos positivos e negativos de uma ala inteira especificamente destinada a essa população.

O tema complexo foi abordado de maneira humanizada, dialogando com as personagens, sem julgamentos de valor e apontando as injustiças e violências sofridas pela comunidade LGBT nas prisões. O método para conseguir isso foi a escuta ativa.

“É uma escuta com atenção, você procurar entender aquela pessoa, o que ela está falando, de onde vêm esses sentimentos. Isso foi muito importante, porque a escuta ativa demanda que você não julgue as pessoas, o que ela fez, as experiências dela. E sim entender as motivações, o contexto. A escuta ativa promove confiança. E sem isso seria muito difícil alcançar a humanização que a gente queria para o nosso livro”, explicou Sakamoto.

Esse processo foi importante para conseguir a confiança de uma população que sofre com a discriminação e a violência tanto na sociedade em geral, mas em especial dentro dos presídios, principalmente os masculinos. Nas visitas aos CDPs, ambos perceberam a separação entre os presos LGBT dos demais.

“A população LGBT é mais fechada. Elas ficam sempre em um canto, próximo da cela delas. Até a forma como elas ficam distribuídas denota a marginalidade dessa população. Geralmente, isoladas em um canto, só entre elas, andando pela região da cela. Enquanto o resto dos detentos ficam espalhados ou na quadra, jogando futebol”, contou Sakamoto.

Esse isolamento decorre do fato de a população LGBT ser tratada como inferior nos presídios masculinos, sendo esperado deles um comportamento passivo e obediente, como ainda cobrado muitas vezes das mulheres. “Quando você entra como LGBT, a leitura que os outros presos fazem é que você vai ocupar o papel social de uma mulher. Não vai participar de decisões, não pega em facas, não podem falar palavrão. São ‘mulheres’ e têm de cumprir um papel submisso. É uma extensão do que ocorre aqui fora”, explicou Cabral.

E, quando interfere, o Estado também não é capaz de responder e garantir de forma efetiva os direitos dos LGBTs presos. Uma solução, por exemplo, é a cela específica, que sempre recebe o número 110, título de um dos capítulos do livro. “A cela das LGBTs é sempre a pior da unidade. Elas não podem escolher, quem tem poder fica com as celas melhores. A 110 é a menos iluminada, úmida, escura, com mofo”, relatou Cabral.

Além disso, uma das situações mais tristes contadas pelos estudantes é a relação entre a não aceitação da pessoa LGBT pela família, sobretudo no caso de travestis e transexuais, e a necessidade de se prostituir nos presídios. “O Estado não consegue oferecer condições básicas aos detentos. E quem fica responsável por isso é a família, por meio dos ‘jumbos’ (modo como são chamados os kits com produtos para presidiários, que incluem cigarros, mantimentos, roupas e itens de higiene pessoal). Só que as mulheres trans e travestis não têm (jumbos), porque geralmente elas foram excluídas do seio familiar. Então elas lavam, passam, costuram roupas, bolas e se prostituem. Isso para conseguir um simples papel higiênico, um sabonete”, relatou Cabral.

Agora formados, os dois pretendem dar continuidade à cobertura de temas de direitos humanos, LGBTs, população encarcerada. E em breve publicar o livro que, por ora, conta apenas com a versão do trabalho de conclusão de curso.

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