Ditadura

Comissão paulista refuta tese de ‘dois lados’ e pede investigação permanente

Colegiado atribui 'atraso' do Estado brasileiro à vigência dos efeitos da Lei da Anistia, referendada pelo STF. Relatório deve apresentar 187 vítimas do regime autoritário

Márcia Yamamoto/Alesp

Comissão da Verdade de SP pede criação de órgão de investigação permanente para investigar crimes da ditadura

São Paulo – Em sua 150ª audiência, a Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo “Rubens Paiva” divulgou relatório parcial no qual refuta a tese de que havia “dois lados” em disputa durante a ditadura (1964-1985) e pede a criação de um órgão permanente de investigação de crimes cometidos durante o período autoritário. “Os torturadores, assassinos e financiadores da repressão seguem sem condenações criminais”, diz a comissão em seu relatório, de 30 páginas, lido no início da noite de ontem (8). O mandato do colegiado, de três anos, termina em março. O relatório final deve acolher temas não contemplados no texto da comissão nacional, que será divulgado amanhã (10), durante cerimônia em Brasília com a presidenta Dilma Rousseff.

No texto, também são feitas críticas à “política do esquecimento” que teria sido promovida pelos governos pós-ditadura. Para a Comissão da Verdade paulista, o “atraso” do Estado brasileiro em relação à apuração de graves violações dos direitos humanos, prática que se mostra “permanente”, está relacionado à Lei da Anistia, de 1979. Para o colegiado, a lei não foi resultado de um acordo, mas uma imposição do governo ainda sob o comando militar. O Supremo Tribunal Federal é criticado por dar respaldo a essa legislação, em 2010 – a comissão entende que o STF “feriu frontalmente a verdade histórica” e “violou fundamentos básicos da teoria do Direito”.

O relatório fala ainda sobre a “visão equivocada” da teoria dos “dois lados” ou dos “dois demônios”, que exigiria investigação tantos de atos cometidos pelo Estado como pelos opositores do regime. A comissão alega que de um lado estão opositores executados e desaparecidos e do outro, agentes do Estado impunes até hoje. “É como se o Estado brasileiro tivesse se tornado um grande esquadrão da morte, uma grande máquina de tortura e desaparecimento. Esse esforço nacional de construção da memória e da verdade tem de continuar”, afirmou o pesquisador da comissão Pádua Fernandes.

As recomendações da comissão estadual incluem ainda criação de memorais para vítimas da ditadura e um pedido formal de desculpas do Estado brasileira às Nações Unidas, à Organização dos Estados Americanos, à Organização Internacional do Trabalho e à Anistia Internacional “pela violação do princípio da boa fé nas relações internacionais”, caracterizada pela divulgação de informações falsas. Entre as chamadas medidas de justiça, o colegiado pede o cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos a respeito do caso Araguaia e a localização, identificação e entrega de restos mortais de desaparecidos aos familiares para um “sepultamento digno”. Também é feita menção à “grande dificuldade de acesso aos arquivos públicos” e se destaca a participação de empresas na colaboração com o regime.

Crianças

O relatório deve citar 187 vítimas do regime autoritário, sendo 167 nascidos ou mortos em São Paulo, e 20 da região do Araguaia. O colegiado publicou um livreto com a sentença da Corte Interamericana, de 2010, além de livros sobre o “Bagulhão”, documento de 1975 com denúncias de 35 presos políticos apontando nomes de 233 torturadores, e sobre crianças vítimas da ditadura, intitulado Infância Roubada, com 42 depoimentos. Essas três publicações podem ser consideradas relatórios parciais, observa Maria Amélia Teles, assessora da comissão e ex-presa política. “Esse livro (Infância Roubada) foi muito sofrido para nós. Mas foi o mais importante”, comentou, lembrando que são relatos desconhecidos da maioria das pessoas.

Em um tópico de reformas legislativas, as propostas são revogação da Lei de Segurança Nacional, de 1983, aprovação de um novo Estatuto do Estrangeiro e revogação da Lei 667, de 1969, e do Decreto 88.777, de 1983, sobre o funcionamento das polícias militares. Há ainda sugestões de reformas constitucionais: formação contínua em direitos humanos das polícias e forças militares, extinção da Justiça Militar e fim dos autos de resistência. “Quando nós vemos o desaparecimentos dos Amarildos, temos de ter em conta que a legislação é daquele período (da ditadura)”, observa o tenente Francisco Paz, da antiga Força Pública, que lista mais de 7.500 militares na resistência à ditadura.

Houve relatos ainda de espionagem em sessões da própria comissão paulista, que sempre foram abertas ao público. O que rendeu um comentário irônico do presidente do colegiado, deputado Adriano Diogo (PT): “A P2 (polícia à paisana) estão tão integrada na nossa comissão que frequenta as festas de aniversário dos nossos netos”. Para ele, embora muitas histórias ainda precisem ser investigadas, as iniciativas da comissão estadual ajudaram a pressionar o colegiado nacional, que teve um início “conservador”, e colaborou para amplificar o debate. “Perdemos o medo. O Brasil mudou nos últimos três anos.”

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