'Ditadura fabril'

A dois dias de relatório, Comissão da Verdade pedirá punição de empresas

Grupo que investigou ações contra o movimento sindical aponta 114 trabalhadores urbanos assassinados. 'Empresas seguiram modelo de militarização', afirma Rosa Cardoso, que ainda vê riscos à democracia

Roberto Parizotti / CUT

Rosa Cardoso afirma que relatório a ser entregue na quarta-feira vai indicar empresas que perseguiam empregados

São Paulo – Com a avaliação de que os trabalhadores foram “o alvo primordial” do golpe de 1964, o grupo da Comissão Nacional da Verdade que investigou ações contra o movimento sindical no período da ditadura (1964-1985) propõe a responsabilização civil de empresas que colaboraram com o regime autoritário. A recomendação constará do relatório final do colegiado, que será divulgado nesta quarta-feira (10), em Brasília. Durante ato realizado hoje (8), em São Paulo, a coordenadora do grupo de trabalho na CNV, Rosa Cardoso, informou que o texto contém nomes de 114 trabalhadores urbanos “que comprovadamente podemos dizer que foram assassinados”, além de uma lista com duas dezenas de empresas, privadas e públicas, que perseguiram empregados e sindicalistas.

Segundo Rosa, havia “uma ditadura fabril, uma ditadura dentro da ditadura”. E uma sintonia entre todos os setores para adotar no Brasil um modelo concentrador de renda, a partir de um projeto comum das elites militares e civis. “Nunca se viu uma articulação tão perfeita, tão sintonizada, tão profunda entre o público e o privado. As empresas seguiram um modelo de militarização.” Além dos 114 nomes, ela cita ainda casos de indução a suicídio e massacres de trabalhadores. “Queremos justiça e reparação. Não nos contentamos com a questão da verdade”, disse Rosa em ato que contou com representantes de dez centrais sindicais, participantes do grupo, que teve 18 de suas 43 recomendações acolhidas no relatório a ser divulgado quarta-feira. “Somos muitos. Somos muito mais que os generais que fizeram o golpe e hoje se mexem nervosamente por aí.”

O próximo passo será conseguir convencer o Judiciário a aceitar ações – que já vêm sendo propostas pelo Ministério Público, mas sistematicamente rejeitadas. A partir da divulgação do relatório e do movimento que provavelmente surgirá, Rosa Cardoso acredita que esse cenário pode começar a mudar. “Todas as pessoas racionais refletem todos os dias e mudam de posição. Juízes mudam de posição. Há uma parcela da sociedade que dizia: o passado passou. Não passou. Existe uma questão chamada memória.”

Para a procuradora da República Eugênia Gonzaga, o Brasil era um país “vergonhosamente atrasado” em relação a assuntos ligados a graves violações de direitos humanos. Desde o caso das ossadas de Perus, em São Paulo, “vimos que era um tema totalmente abandonado, que as autoridades deixaram de lado”. Ainda há entraves no Poder Judiciário, acrescenta. “Se o Ministério Público fez a sua parte – tardiamente –, o Judiciário ainda é de uma resistência imensa.” Ela lamentou que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha endossado a Lei da Anistia, o que fez com muitas ações fossem travadas – inclusive a referente ao caso do Riocentro (1981), posterior à lei (1979). “Não é uma discussão técnica-jurídica, é uma discussão política.” Eugênia citou ainda a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já condenou o Brasil no caso Araguaia. “Em 1988, o Brasil assinou uma Constituição em que se submete a decisões de cortes internacionais naquilo que se refere a direitos humanos”, observou.

Quanto à responsabilização civil de empresas, o procedimento será o de propor ações nas próprias regiões onde ocorreram as perseguições. “Esse é um setor que precisa ser responsabilizado. Não temos dúvida de que houve essa colaboração por parte de empresas, empresários, e também empresas de mídia.” Para a procuradora, as próprias companhias envolvidas deveriam ser as principais interessadas em, por exemplo, assinar um termo de ajuste de conduta (TAC).

Conforme o relatório do grupo de trabalho, a colaboração se dava de diversas maneiras. Desde a presença de agentes infiltrados nas fábricas, a formação de órgãos de segurança dentro de empresas estatais e particulares, até o fornecimento de “listas negras” de trabalhadores para organismos como Dops e Doi-Codi, e o financiamento e apoio material/logístico para atividades de repressão.

Rosa Cardoso citou, entre outros, o exemplo da Petrobras, que foi “totalmente militarizada” durante o período autoritário, realizando 700 demissões e investigando 1.500 funcionários. “A corrupção na Petrobras não começou agora. Pelo contrário. Foi muito mais forte no passado”, acrescentou. Para ela, a reparação é necessária, inclusive, para que as empresas sejam menos “selvagens”. Ela avalia que este é um movimento positivo para o país. “Por querer ser mais civilizados é que criamos um processo de construção da memória, da verdade e da justiça.”

A representante da CNV também é favorável à punição de militares. “Não lhes desejo mal, mas quero justiça.” Mas fez ressalvas a mandá-los para a prisão, “tal como ela é no Brasil”, sugerindo “outras formas de restrição da liberdade”. Rosa também manifestou preocupação com a preservação da democracia, lembrando de movimentos atuais e do ambiente pré-64. “Foi em nome da democracia que eles fizeram o golpe. Essa bandeira é nossa. Essa é a nossa palavra de ordem.”

Com palavras e ênfase diferentes, os sindicalistas reafirmaram que o trabalho da CNV não termina quarta-feira. Deve continuar em termos de busca de novas informações, identificação e responsabilização de responsáveis. As centrais encaminharam hoje ao Ministério do Trabalho e Emprego um pedido para que o Executivo faça um levantamento de todas as intervenções realizadas pelo Estado em entidades sindicais de 1946 até 1988.

O documento ganhou as assinaturas de Clodsmidt Riani e Raphael Martinelli, remanescentes do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), dissolvido após o golpe de 1964. Terá também o nome do comandante Paulo Melo Bastos, que, com 96 anos, não pôde vir do Rio de Janeiro para o evento, mas gravou uma mensagem de apoio. “A democracia é isto. Não tem tanque de guerra nos cercando e levando a gente. Ainda não é o que a gente quer, mas permite falar o que sentimos”, disse Martinelli.

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