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‘Legado’ de segurança da Copa: despreparo do Estado com manifestações

Especialistas em segurança pública e direitos humanos avaliam que democracia sofreu, mas abriu espaço para avançar em demandas como reforma das polícias e do Poder Judiciário

Sérgio Vale/ Secom-AC

Policiais que integram a Força Nacional de Segurança concluem treinamento no Acre

São Paulo – Especialistas reunidos no 8º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública avaliaram que o “legado” da Copa do Mundo do Brasil no âmbito da segurança foi a exposição do despreparo do Estado brasileiro para lidar com as manifestações, atos que reivindicavam políticas públicas, mas que receberam dos governantes a falta de diálogo e a repressão.

Para Lucia Nader, da ONG Conectas Direitos Humanos, o balanço é de que “vários aspectos da democracia retrocederam no último ano, passando ou não pelo sistema legal de Justiça”. Repressão violenta de protestos, falta de investigações sobre abusos, buscas sem mandado e prisões sem provas são os principais pontos apontados pela Conectas como negativos.

No entendimento da Conectas, os policias na rua devem ser responsabilizados por excessos, mas é preciso lembrar que existe uma cadeia de comando, ou seja, é necessário verificar quem estabelece as ordens cumpridas na ruas.

Nesse sentido, a ONG pediu à Secretaria da Segurança Pública (SSP) de São Paulo, plea Lei de Acesso à Informação, o nome de quem deu a ordem para atuação da Polícia Militar no dia 13 de junho de 2013. Naquela noite, a PM reprimiu violentamente uma manifestação contra o aumento da tarifa de ônibus na avenida Paulista, em que foram feridos manifestantes e jornalistas. “Após um ano, nunca recebemos resposta. Já recorremos e estamos judicializando a questão”, explicou.

Ela também contou que a ONG elaborou, em parceria com a Defensoria Pública, uma cartilha com seis recomendações pautadas na legislação brasileira e em condutas internacionais de atuação em protestos. No entanto, a SSP nunca retornou ao pedido de consideração das entidades.

Porém, para o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) Bruno Paes Manso, a forma como a Polícia Militar agiu durante os protestos desde junho de 2013 em São Paulo, ora violentamente, ora omitindo-se, deixou “clara a falta de responsabilidade política do secretário e do governador, que não tinham qualquer comando sobre as forças policiais”.

Paes Manso reconstruiu a cronologia dos protestos e lembrou a surpresa que cada ato ia causando, tanto na polícia, quanto nos governos, quanto na imprensa. E que todos tiveram reações desproporcionais. A polícia reprimiu, depois omitiu-se, depois reprimiu. A imprensa pediu atitude firme da polícia, depois condenou as agressões e passou a tentar pautar os protestos. Os governos se colocaram firmemente contra a reivindicação, até o dia anterior à decisão de cancelar o reajuste da tarifa de ônibus que desencadeara os protestos.

O representante da Anistia Internacional, Atila Roque, considerou que a situação relatada deixa claro que o país ainda não superou a transição da ditadura para a democracia. “O Estado se mostrou muito despreparado para lidar com os protestos e o direito a liberdade de expressão. E deixou na ponta o policial para atuar muito descoberto, com uma doutrina que promove apenas uma ação de repressão e dispersão.”

Roque citou estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que demonstra esse despreparo, na visão dos próprios policiais. Segundo a pesquisa, 64% dos policiais admitiram não ter treinamento para lidar com protestos, 69% disseram ter agido como foi possível, pois não tinham recebido orientação clara do comando e só 10% afirmaram que agiram de forma correta.

O debate, no entanto, estava se desenvolvendo em uma linha muito clara de “segurança”. Os debatedores pareciam ter cuidado com as expressões e com o equilíbrio das opiniões.

O clima pesado foi logo justificado quando o representante da Anistia expôs os dados e afirmou que a situação de violência não é nova, pois a polícia mata muito nas periferias. “Onde estão esses dados que indicam que a polícia mata nas periferias?”, questionou um policial militar no meio da plateia. “Eu desconheço que polícia mate indiscriminadamente.”

“São dados da Anistia que estão disponíveis no site e eu vou ter muito prazer em discuti-los com o senhor”, respondeu Roque. O representante da Anistia ressaltou depois que os inquéritos e as prisões decorrentes do processo de manifestações, nos coloca em “um ambiente perigoso de relativização do Estado de Direito em nome do combate a manifestações violentas”. E, para Roque, boa parte dessa complacência é alimentada por parte da imprensa, que construiu uma narrativa legitimando qualquer ação contra “manifestantes violentos.”

Outro ponto que chama a atenção do ativista da Anistia é o clima de vigilância que vem se estruturando no país. “Os centros de informação das Forças Armadas estão tendo sua atuação expandida. Está se querendo monitorar movimentos. Isso é muito perigoso”, comentou.

A mudança na forma de organização dos atos de rua são uma das principais questões para a pesquisadora da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) e major da reserva da Polícia Militar de São Paulo, Tânia Pinc. Ela ponderou que a proposta de horizontalidade e a ausência de lideranças fez desmoronar a base da atuação policial, que se dava na negociação com líderes, na obtenção de informações sobre quantidade de gente e nos objetivos de atos.

“Isso liquidou o planejamento. A polícia teve de se adaptar a um processo que ela não conhecia. O resultado disso foi o emprego desproporcional de policiais, tanto para cima quanto para baixo e o número elevado de detenções equivocadas e de uso excessivo da força”, explicou Tânia.

Para ela, o governo deve elaborar protocolos de atuação em manifestações e não se eximir do diálogo com a população. “Temos um governo civil que recorre a forças de segurança para conter manifestações políticas e não precisar dar respostas às demandas. E coloca a polícia para tratar dessas questões”, concluiu.

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