São Paulo

Morador de rua deixa hospital nesta quarta sem atenção da família e do município

Convalescente, HLS terá de deixar o hospital, mas a família não quer ampará-lo por seu histórico de violência associado ao alcoolismo

Yasmin Abou

Em fevereiro, HLS foi diagnosticado com abstemia etílica. Cinco dias depois, entrou em coma com choque séptico

São Paulo – Sem protocolos de atendimento entre saúde e assistência social, pessoas em situação de rua ainda convalescentes recebem alta de hospitais municipais sem qualquer tipo de amparo em São Paulo. Assistentes sociais que atuam nesses locais não seriam treinados a acionar a rede de atendimento e muitos doentes acabam voltando para rua.

Em fevereiro passado, a reportagem da RBA mostrou a dificuldade que tiveram para conseguir atendimento do Samu as pessoas que viram HLS, de 41 anos, agonizando na rua. O homem tremia e apresentava escoriações quando foi encontrado na rua Rego Freitas, no centro da capital. Graças à persistência desses desconhecidos, ele foi levado a ao Pronto Socorro Bandeirantes, no quilômetro 12 da rodovia Raposo Tavares.

Já no PS, o diagnóstico de abstinência de álcool, que havia sido dado pelos técnicos do Samu sem nem mesmo tocá-lo, se manteve durante cinco dias, até que HLS entrou em coma e foi encaminhado para a UTI do  Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni, no Rio Pequeno. Familiares localizados pela estudante de Direito Yasmin Abou, que acompanhou o socorro, foram informados de que o morador de rua estava com diversos traumatismos, inclusive craniano. Só depois de 20 dias inconsciente, em 24 de março, ele acordou.

A RBA esteve no hospital no começo da tarde de hoje (15) para conversar com HLS, mas ele delirava. Ainda estava com um curativo na cabeça, movia os braços lentamente. Em um quadro instalado no corredor do hospital, seu diagnóstico está descrito como “choque séptico”, uma infecção grave, que se alastra pelo corpo rapidamente e pode causar morte. Mesmo assim, segundo informação da Secretaria Municipal de Saúde, ele recebeu alta na tarde desta terça-feira e aguarda a família ir buscá-lo.

Questionadas pela reportagem, que não chegou a se identificar, as assistentes sociais afirmaram que o homem não poderia ser encaminhado para albergues municipais. Tanto por não ter mobilidade, quanto por ter casa e família.

Apesar de terem feito algumas visitas, os familiares não querem levá-lo para casa, já que ele teria um histórico de furtos e violência em função do vício. A equipe de assistência social do hospital insiste para que o amparem.

“Não sei o que fazer, porque ele não tem para onde ir. Ele está em abstinência, não consegue andar. É desesperador”, afirma a universitária, que tem perdido aulas e dias de trabalho para fazer visitas a HSL, até então desconhecido. “A família esteve em reunião com as assistentes sociais e elas dizem que tem lugares que pode ajudá-lo, mas não dizem o nome. Não tem condições de pagar uma clínica”, afirma.

Ativistas e membros de conselhos municipais afirmam que toda a situação é irregular, mas comum. Segundo o conselheiro municipal de Assistência Social Francis Larry Lisboa, o município tem leitos para pessoas convalescentes e poderia ter sido acionado. Lá, auxiliares de enfermagem poderiam ajudá-lo com a medicação e com a locomoção. Também há o Complexo Prates, cujo atendimento é voltado para dependentes químicos, e o Boraceia, que atende a doentes em situação de vulnerabilidade.

No entanto, nem sempre os assistentes que trabalham em hospitais conhecem a rede de atendimento, segundo Lisboa. “Não existe nenhum protocolo nesse sentido. Apesar de serem assistentes sociais, os funcionários de hospital têm olhar focado em saúde. Eles estão ali mais para ver questão de um remédio que a família não pode comprar, coisas assim. É uma luta nossa de muito tempo a criação desse protocolo”, afirma Francis.

O procedimento mais adequado seria ligar para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) para que fosse oferecida uma vaga em um desses serviços. No entanto, de acordo com Lisboa, isso só é feito quando um hospital está habituado à presença de pessoas em situação de rua. HLS foi socorrido na região central, a algumas quadras da Santa Casa de Misericórdia, mas foi levado para a zona oeste, em um bairro periférico.

O resgate dos vínculos familiares é bem-vindo, mas não impediria o acolhimento, admite a coordenadora do Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua (Comitê PopRua), Luana Bottini. “O caminho normal nesses casos é o encaminhamento para o Centro de Acolhida. É importante que a família tome parte, mas não goela abaixo”, afirmou.

Abraço Seletivo

Para o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, padre Júlio Lancellotti, a rede de atendimento para esses cidadãos nunca esteve tão sucateada. “Nós não sabemos mais com quem dialogar. Já tentamos a secretária (Luciana Temer, Assistência Social), o prefeito Fernando Haddad, e nada”, lamenta.

Para o presidente do Movimento Nacional das Pessoas em Situação de Rua, Anderson Miranda, a gestão do prefeito Fernando Haddad foca toda a gestão da Assistência Social no programa De Braços Abertos, voltado para usuários de crack que vivem no bairro da Luz, na região conhecida como cracolândia. “Abandonou o Samu, as UBSs. Todo o resto que envolve a saúde da população de rua, que é muito mais do que o crack”, afirma.

Para Lancellotti e Miranda, falta coordenação política para fazer cumprir os protocolos já existentes e priorizar a interssetorialidade nas ações voltadas para essa população.

Há duas semanas, Haddad comemorou em um evento público a redução a zero em 2013 do número de assassinatos de pessoas em situação de rua. Até o início de sua gestão, no ano passado, a cidade liderava esse ranking macabro no país. Miranda reconhece esse avanço, mas pondera que ainda falta muito. “Eu disse a ele que as pessoas não morriam mais, mas continuavam sofrendo violações gravíssimas em relação à sua saúde e seus direitos básicos.”

Histórico

Em julho do ano passado, a cadeirante Meire de Oliveira, de 55 anos, morreu na Praça da Sé. Ela vinha passando mal fazia alguns dias. Seu marido chegou a chamar o Samu para resgatá-la mas, quando a unidade chegou, Meire já estava morta. Seu corpo ficou coberto por uma manta e cercado por ratos durante sete horas antes de ser levado para o Instituto Médico Legal. Depois desse episódio, a prefeitura conseguiu uma mudança no protocolo de atendimento do Samu: eles teriam deixado de exigir um número de telefone para confirmar a emergência.