Memória e verdade

CNV propõe a criação de uma rede permanente de proteção à democracia

Integrante da CNV, Claudio Fonteles afirma que a divulgação de novos laudos periciais e versões para os crimes cometidos pela ditadura atraem o apoio da opinião pública

Wilson Dias/ABr

Fonteles: intenção da rede é incentivar criação de comitês em universidades, sindicatos e entidades representativas

Rio de Janeiro – Ainda parcial, o acesso aos documentos produzidos pelo próprio Estado brasileiro durante a ditadura no país (1964-1985) é fundamental para que mais casos de morte ou desaparecimento ocorridos naquele período venham a ser esclarecidos ou sofram novas análises periciais. A afirmação foi feita ontem (4) pelo jurista Claudio Fonteles, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Graves Violações aos Direitos Humanos da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Para que isso seja possível, Fonteles sugere que seja constituída uma rede nacional permanente de proteção à democracia no Brasil “que continue a funcionar mesmo após o término do mandato da CNV”.

Claudio Fonteles conversou com a Rede Brasil Atual antes da abertura do seminário internacional “Documentar a Ditadura: Arquivos da Repressão e da Resistência”, organizado pelo Arquivo Nacional no Rio de Janeiro. Ele falou sobre o impacto das recentes revelações a respeito dos assassinatos de Vladimir Herzog, Manoel Fiel Filho, Luiz Eurico Tejera Lisbôa e Ângelo Cardoso da Silva na opinião pública e no trabalho da CNV: “A revelação de casos está mexendo mais com as pessoas e fez também com que, desde outubro do ano passado, a imprensa começasse a se envolver conosco fortemente. Isso é fundamental, pois se os jornalistas não se envolverem, podemos esquecer a CNV. Conseguir manter esse tema na pauta da imprensa será vital para que nunca mais tenhamos a experiência de um estado ditatorial militar”, diz.

As revelações feitas pela CNV continuarão, segundo Fonteles, abarcando outros casos emblemáticos do período da repressão: “Estamos trabalhando com a Comissão Estadual de Pernambuco para esclarecer a morte do padre Antônio Henrique, que era assessor especial de Dom Hélder Câmara. Documentos que obtivemos mostram a intervenção do então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, para mudar o destino de todo o inquérito, dizendo que o padre fora morto por um dependente químico com quem trabalhava, e não pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), apesar de o próprio Secretariado Nacional de Informação (SNI) fazer essa avaliação. Também teremos em breve novidades esclarecedoras sobre a morte de Dom Lucas Alves em Minas Gerais e de Eduardo Collier e Fernando Santa Cruz no Rio de Janeiro”.

Citando a frase “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”, que está pintada na parede da sala onde trabalha no Arquivo Nacional, Fonteles exorta a todos os interessados a criarem uma rede que garanta a continuidade das pesquisas e investigações iniciadas pela CNV: “A análise desse material, sem dúvida, se estenderá para além do término do mandato da comissão. Nossa intenção é estimular todos nós, brasileiros, a criarmos uma grande rede permanente protetiva da democracia, incentivando a criação de comitês em universidades, sindicatos e entidades representativas. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), por exemplo, já fizeram isso. Esses comitês não têm data para acabar, ao contrário da CNV e das Comissões Estaduais da Verdade”, diz.

O jurista falou sobre a importância do Arquivo Nacional para o sucesso da missão da CNV: “Lá, você tem cerca de 16 milhões de documentos ainda a serem pesquisados. Eu não vou chegar a pesquisar um milhão. Tenho produzido textos, cerca de 150 páginas já estão no site da CNV. Tudo o que eu digo é comprovado com a documentação produzida pelo próprio estado ditatorial militar. Essa documentação hoje é aberta, mas antigamente era classificada como secreta, reservada ou confidencial”.

Ditadura era um polvo’

O jurista admite que, em princípio, não confiava no trabalho de pesquisa da CNV junto ao Arquivo Nacional, mas afirma que foi positivamente surpreendido: “A palavra ‘arquivo’, na visão de muitos juristas, é igual à cesta de lixo, mas descobri que, no caso do Arquivo Nacional, é uma fonte límpida e inesgotável de conhecimento. Desde maio do ano passado, quando a comissão foi empossada, eu comecei a frequentar o Arquivo Nacional no Rio e em Brasília e percebi que havia uma documentação enorme, produzida pelos grandes órgãos do chamado Sistema Nacional de Informações (Sisni). O estado ditatorial militar era como um polvo. A cabeça desse polvo era o Sisni e os tentáculos eram os órgãos de informação das corporações militares: o CIE do Exército, o Cenimar da Marinha e Cisa da Aeronáutica, o SNI e o Dops”.

Sobre os próximos passos da CNV, Fonteles afirma que a meta é continuar o trabalho de pesquisa documental e produção de textos: “Uma nova leva de textos será publicada em setembro”, diz. Outra meta da comissão é promover mais audiências públicas em todo o Brasil: “Foi muito importante a audiência feita com o coronel Brilhante Ustra, onde apresentamos documentos que mostram que as pessoas foram mortas na condição de presas no DOI-Codi. Faremos esse tipo de audiência em todo o Brasil, em parceria com as comissões estaduais”, promete.

Novos laudos

A divulgação de novos laudos periciais que desmontem as versões sustentadas pela ditadura para a morte de militantes e guerrilheiros também será acentuada: “Vamos aprofundar o leque do trabalho pericial. Tivemos essas revelações dos últimos dias e também já tínhamos apontado as contradições no caso do assassinato de Carlos Marighela, onde demonstramos que ele foi morto quando já estava dentro do carro e sem a menor chance de defesa,e não em pé, como sustentava a versão da ditadura. Vamos manter essas linhas” diz.

Fonteles quer que as recomendações finais da CNV, a serem entregues no ano que vem ao governo brasileiro, tenham ampla participação da sociedade: “A Comissão Nacional da Verdade sozinha não vai a lugar nenhum. As recomendações têm que ser medidas permanentes e concretas. Não podem ser só da CNV, têm que ser resultado de uma obra plural e coletiva. Todos os cidadãos precisam conhecer o que houve no período da ditadura. Nossos netos e os netos dos nossos netos precisam conhecer a verdade dos fatos. Somente isso garantirá a perenidade da democracia no Brasil”.

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