Direito à memória

Comissão da Verdade do Rio vai investigar crimes simbólicos da ditadura

Casos como a bomba do Riocentro, o plano de atentado no gasômetro e a montagem da Casa da Morte, entre outros, serão alvo do colegiado instalado hoje

Shana Reis. Governo do Rio

Damous recordou que os militares que souberam honrar a farda foram as grandes vítimas da ditadura

Rio de Janeiro – Elaboração de planos para um atentado ao gasômetro, explosão de bomba no Riocentro, montagem da “Casa da Morte” em Petrópolis para o extermínio de presos políticos, envio de carta-bomba à sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que matou a secretária da entidade Lyda Monteiro da Silva. Com grande carga simbólica, esses e outros fatos ocorridos no Rio de Janeiro, mas que habitam a memória nacional, foram lembrados hoje (8), na cerimônia de posse dos sete integrantes da Comissão Estadual da Verdade, realizada na sede da OAB-RJ.

Durante a cerimônia, diversos discursos ressaltaram a importância histórica do Rio de Janeiro – tanto pelos atos de repressão que ocorreram no estado quanto pela luta contra a ditadura travada em terras fluminenses – e afirmaram a grande expectativa em relação às investigações conduzidas pela comissão estadual e à possibilidade de que seus resultados possam impulsionar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Em um auditório lotado, participaram da cerimônia o governador do Rio, Sérgio Cabral, a ministra da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Maria do Rosário, e a advogada e professora Rosa Maria Cardoso, integrante da CNV. Também fizeram parte da mesa Paulo Abrão (presidente da Comissão de Anistia), Marco Antônio Barbosa (Comissão de Mortos e Desaparecidos) e Ronaldo Kramer (vice-presidente da OAB-RJ), além dos secretários estaduais de Direitos Humanos, Zaqueu Teixeira, e da Casa Civil, Régis Fichtner.

O presidente da Comissão Estadual da Verdade do Rio é o advogado Wadih Damous, ex-presidente da OAB fluminense. Também integram a comissão a advogada Eny Moreira, o sindicalista e ex-senador Geraldo Cândido, o advogado Marcelo Cerqueira, o especialista em direitos humanos e professor da UFRJ João Ricardo Dornelles, a professora e advogada Nadine Borges e o escritor e jornalista Álvaro Caldas. Durante a cerimônia, Damous, ao lado de Rosa Cardoso, assinou um acordo de cooperação técnica entre a Comissão Estadual da Verdade e a CNV.

Em um discurso contundente e várias vezes interrompido por aplausos, Damous afirmou que “a Comissão da Verdade do Rio vai enfrentar essas questões como elas devem ser enfrentadas” e rechaçou as cobranças, feitas por setores militares, sobre a parcialidade das investigações. “No momento da instalação, vozes que surgem das trevas vieram falar nos jornais e cobrar da comissão que também investigasse aqueles que combateram a ditadura civil-militar com os meios e modos apropriados para aquele momento. Queremos dizer que não vamos entrar nessa provocação”, disse.

Sem revanchismo

A comissão, continuou seu presidente, também não atuará por revanchismo: “Ninguém aqui está propondo que torturemos os torturadores. Estamos bradando por justiça. A eles o Estado democrático de direito! A eles o direito de se sentar no banco dos réus! Aqui no Rio, de vez em quando esbarramos com um [torturador] por aí. Vivem nos restaurantes e nas ruas como se nada tivesse acontecido, com a tranquilidade de quem não tem peso na consciência. Isso é inaceitável, até quando olhamos para o panorama da América Latina e vemos como está sendo tratado esse tipo de bandido na Argentina, no Chile e no Uruguai”.

Damous avisa aos militares descontentes que a comissão “irá, sim, olhar para os dois lados” durante as investigações: “Temos aqueles que não honraram a farda, como o brigadeiro [João Paulo] Burnier, que queria explodir o gasômetro do Rio e poderia ter causado uma catástrofe de dimensões desconhecidas na cidade. Temos o exemplo do capitão Wilson Machado, que tentou explodir a bomba que talvez matasse milhares de pessoas em um show de 1º de Maio no Riocentro em 1981. Mas, temos também exemplos de heróis como o brigadeiro Moreira Lima ou o capitão Sérgio Macaco, que descumpriu a ordem de seu comandante para não cometer uma chacina.”

“É um paradoxo, nós falamos em ditadura militar, mas a categoria profissional mais atingida pelo golpe foi justamente a militar. Muitos foram perseguidos e tratados como desertores e traidores. Vamos contar a história desses brasileiros, que terão na Comissão Estadual da Verdade uma caixa de ressonância”, prometeu Damous.

Casa da Morte

Investigações especiais serão feitas sobre a Casa da Morte, onde Inês Etienne Romeu foi a única a sair viva. “Queremos saber quem passou por lá, quem lá foi supliciado e quem foram os supliciadores. Vamos descobrir e dizer à sociedade nomes, cadeias de comando e tudo o mais que se fizer necessário para restabelecer a verdade”, disse Damous, que classificou os crimes da ditadura como “uma espinha atravessada na garganta da sociedade brasileira”.

As investigações abrangerão também parlamentares e empresários que financiavam a repressão, além do Poder Judiciário: “Temos de investigar o papel vergonhoso do Poder Judiciário durante a ditadura militar. Ao jogar luz sobre o processo de falência da Panair, empresa com robustez patrimonial e que teve a falência decretada de forma arbitrária, nós jogaremos luz em alguns aspectos que não honram o Poder Judiciário brasileiro”.

O Judiciário, segundo Damous, “é ainda um obstáculo ao pleno trabalho das comissões” instaladas no Brasil. “Há dois anos, o STF, ao interpretar a Lei de Anistia, infelizmente equiparou torturados e torturadores, perseguidos e perseguidores. O STF reconheceu a anistia aos torturadores, mas nós não a reconhecemos”, disse o presidente da Comissão da Verdade do Rio.

Momento particular

Para Rosa Cardoso, a Comissão da Verdade do Rio está sendo instalada em um momento particular. “Temos agora um momento já de grande amadurecimento da sociedade pelo trabalho que a CNV vem desenvolvendo há um ano. Sem falar no período anterior à sua criação, que foi de muita luta da sociedade para construí-la. De modo que existe o interesse muito grande da sociedade pelas questões que a comissão vem tratando”, disse a integrante da CNV, citando como exemplo “o enorme interesse provocado na mídia pela exumação do corpo de João Goulart”.

Segundo Rosa, a CNV passa por um “momento de inflexão” em suas posições. “Hoje, a CNV reconhece, como faz parte do entendimento da ONU e da OEA, que a questão da verdade se associa à questão da justiça. Não existe verdade sem justiça. Mas a justiça que se quer não é uma justiça de exceção, é uma justiça do Estado de direito”.

A ministra Maria do Rosário saudou a instalação da comissão no Rio. “A democracia não é obra feita e acabada. É uma construção de todos os dias. Não é possível construir democracia efetiva e plena em todos os sentidos se nós não ouvirmos as vozes que precisam ser ouvidas e não conhecermos as histórias que precisam ser conhecidas. Se é verdade que o Rio foi palco de momentos terríveis de violação dos direitos humanos, de torturas, mortes e desaparecimentos forçados, também sempre foi palco da resistência e da luta do povo”, disse.

O momento de maior emoção da cerimônia se deu durante o depoimento de Ana Lúcia Paiva, filha do então deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura. Ana Lúcia se lembrou do sofrimento e medo vividos durante anos em que sequer podia dizer que seu pai era um desaparecido político. “A violência foi também com as pessoas que ficaram”. Outro momento emocionante se deu quando o poema “Nossos Inimigos Dizem”, de Bertolt Brecht, foi lido pelo ator Osmar Prado: “Nossos inimigos não querem a verdade, mas nós a divulgaremos”.

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