Dito e feito

Comunismo: uma palavra cercada de vaguidades, imprecisões e disparates

Muitos dos que acham que sabem o que é comunismo nunca leram nada a respeito. Mas alguém se pergunta se Lula e Dilma acabaram com a propriedade privada?

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Se um especialista é convidado a fazer uma exposição ou a dar uma explicação (por exemplo, numa entrevista: “do que trata mesmo a filosofia?”; “defina comunismo em poucas palavras, para nosso público”), ele vai ter alguma dificuldade e talvez comece dizendo que se trata de um tema complicado para o qual seriam necessários vários programas.

Talvez acrescente, com um sorriso um pouco complacente ou mesmo de superioridade, que a bibliografia disponível é extensa (até mesmo na internet), que estuda a questão (pode ser outra, por exemplo, o aquecimento global) há bons anos e tem mais dúvidas do que certezas.

Já um não especialista, sobretudo o simplório meio fanático, resolve o problema em meia dúzia de palavras ou em uma frase (comunismo é esse negócio de LGBT, casamento gay, direitos humanos, terra pra quilombola, tudo isso aí, tá ok?).

A questão, assim posta, meio caricaturalmente, possibilita outras tantas: serão mesmo necessárias tantas especificações e dúvidas, como defende o especialista? e será mesmo uma simplificação grosseira a abordagem do indivíduo simplório, que Olavo de Carvalho chamaria hoje de “caipira”?

Um antigo amigo (e não um amigo antigo) costumava dizer – não lembro se era uma citação ou invenção dele – coisas como “explique o que é ‘imperativo categórico’ em cinco minutos e sem usar a palavra ‘conotação’”.

A brincadeira resume uma teoria – não totalmente errada: cada discurso (representado por uma palavra, como nos exemplos) é de fato breve e simples, mas é muito repetido, com muitas variações estilísticas, mais ou menos relevantes. Por isso, talvez, muita gente pensa que, no fundo, tudo é fácil e os intelectuais é que complicam.

Quem conta história parecida é Rojo (em Borges e a mecânica quântica, livrinho editado em 2011 pela Editora da Unicamp e que eu cito – lá vai propaganda – no segundo dos Cinco ensaios sobre humor e análise do discurso, da Parábola): a mãe de um físico que trabalhava na tese lhe perguntou qual era o tema. Ele respondeu que seria impossível explicar (para ela, ele deve ter pensado), porque era coisa muito difícil. E ela comentou: “se não pode me explicar, é porque na verdade não entende”.

Por simples associação, me ocorre dizer que este é o drama da divulgação científica: como explicar, por exemplo, o espaço curvo ou a mecânica quântica (se bem que essa deve ser fácil, porque muita gente que mal sabe somar fala dela com desenvoltura e a aplica à alimentação e talvez à moda). Quem consegue explicar Lacan ou a nanotecnologia a um leigo?

No entanto, é com “explicações” ou aplicações da palavra de maneira simplória (caipira, nos termos dele…) que se faz política. Há alguns anos, eu imaginava que Lula e seus seguidores poderiam ser derrotados em eleições nacionais porque muita gente traduziu “bolsa família” por “bolsa esmola” e se convenceu de que era distribuída aos nordestinos que não trabalham. Logo, perderia nas outras regiões do país – onde há talvez menos pobres, mas também muito mais preconceitos. Embora tudo isso seja mentira – que seja esmola, que seja distribuída aos nordestinos, que eles não trabalham – é um discurso que pega, dada a longa memória e o grande, o enorme preconceito racial.

Mas não, não foi isso que aconteceu! Na última eleição presidencial, ao lado das fakenews mais deslavadas, como a da mamadeira com piroca, houve grande efeito eleitoral do discurso anti-comunista. Ou seja, Haddad perdeu não só por causa da corrupção e da ideologia de gênero (de que a piroca na mamadeira é a principal metonímia), mas também porque se pensou que a questão era derrotar o comunismo. Quanta asneira revelou o emprego da palavra “ideologia”!!

Voltando ao começo: se perguntarem a um historiador ou a um cientista político o que é o comunismo, ele vai pedir desculpas e um tempo maior para explicar, e vai avisar que mesmo assim o comentário será uma simplificação.

Mas todos os outros brasileiros acham que sabem! Sobretudo os que nunca leram nada sobre o assunto, nem mesmo na internet. Assim, atribuem ao comunismo tanto a defesa dos LGBTs (mal sabem o que os gays sofreram onde o comunismo foi regime de governo!), quanto a defesa dos negros e das mulheres que eles chamam de “vagabundas” (basta ser divorciada para ser uma, imagine então se descasou e depois se uniu a outra mulher!). Aliás, “vagabunda” dá uma coluna… e é sintomático que seu uso seja preponderantemente feminino.

Logo, o PT seria comunista. Mas alguém se pergunta se Lula e Dilma acabaram com a propriedade privada – de bancos, de fazendas, de indústrias, até de times de futebol? Onde está a estatização dos meios de produção? E por que continuaram existindo os mesmos canais de TV e os mesmos jornais e revistas? E por que os tucanos e os “democratas” não foram exilados? Seria por que Fernando de Noronha não é uma Sibéria?

A palavra passou a designar coisas tão disparatadas que não seria surpresa que a Globo fosse acusada de comunismo por denunciar as “supostas” ligações perigosas dos Bolsonaros com as milícias cariocas.

Quem quiser ter uma idéia do que é comunismo (ou do que teria sido a implantação de tal regime na Rússia), mas não gosta de ler, seja porque a vista dói ou porque não tem acesso a livros e revistas, pode ver Trotsky (um seriado) na Netflix.

A assinatura é paga? Verdade. Mas pelo WhatsApp é que não se vai ficar sabendo o que é comunismo! 

Sirio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp-SP)