Desenvolvimento em foco

União Europeia busca energias limpas e renováveis para enfrentar crise de oferta

Plano de Europeia prevê importação de gás de novos fornecedores, implantação mais rápida de energia renovável e mais esforços para economizar energia

bones64 / Pixabay
bones64 / Pixabay
Painel com células fotossensíveis converte a energia do Sol em eletricidade: soluções limpas e renováveis são o futuro

Em nota técnica na 23ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) tratei da questão da União Europeia, sua transição energética e a situação atual da crise de suprimento. A íntegra da nota pode ser lida em https://www.uscs.edu.br/noticias/cartasconjuscs. Aqui, sintetizarei algumas das ideias principais.

Nos últimos anos, os sistemas energéticos mundiais atravessaram processo de transição, no sentido de tornar suas matrizes energéticas cada vez mais renováveis e limpas. Esse processo de caráter global levou diversos países a adotarem medidas direcionadas à descarbonização, tanto em nível de oferta, quanto de demanda, levando em conta o aumento da participação de energias renováveis intermitentes, a redução da participação de combustíveis fósseis, o estímulo ao desenvolvimento de tecnologias que permitam a redução das emissões de gases potencializadores do efeito estufa (GEE) nos processos produtivos e a adoção de mecanismos de taxação de produtos que contenham altos índices de pegada de carbono (1).

Historicamente, a União Europeia (UE) liderou esse processo com uma estratégia baseada em três pilares principais: aumento da eficiência energética e redução de desperdício; maior eletrificação nos setores de transporte e industrial; uso de energias renováveis e combustíveis de baixa emissão de carbono para gerar eletricidade.

Em função da retomada da economia pós-pandemia, o crescimento da demanda total de energia vem contribuindo para o desequilíbrio entre a oferta e demanda dos combustíveis fósseis. Tendo em vista que a maior parte do suprimento de energia dos países ainda advém desses combustíveis, em geral, o preço final da energia elétrica tem como referência os preços do carvão ou do gás natural.

Desta forma, o aumento do preço destes combustíveis implicou em preços mais elevados da eletricidade. Países como a Alemanha, França, Itália e Reino Unido registraram aumentos das tarifas de energia elétrica que atingiram até quatro vezes mais àqueles verificados em 2020.

Além da questão da demanda, outros fatores externos e geopolíticos consolidam um cenário de grande crise energética na Europa, tais como: a interrupção da oferta de gás natural da Rússia decorrente da guerra da Ucrânia, com preços mais baixos associados ao transporte por meio de gasodutos; o surgimento de eventos climáticos extremos; o esgotamento das reservas de gás natural regionais, o que implica em ampliar a importação de gás natural liquefeito (GNL) (2), cujos preços são mais elevados em comparação ao gás transportado por gasodutos, em função dos altos custos unitários dos processos de liquefação e de armazenamento no país de origem e de regaseificação no país de destino (3); e a redução da velocidade do vento em algumas regiões e, consequentemente, menor oferta de energia eólica.

Antes da guerra, a Rússia fornecia 40% do gás natural e 27% do petróleo importado para a União Europeia. Dessa forma, a Comissão Europeia propôs um plano com três tipos de atuação: importação de gás oriundo de outros fornecedores, implantação mais rápida de energia renovável e mais esforços para economizar energia.

Por outro lado, grandes exportadores de gás natural, como a Rússia e o Catar, passaram a priorizar o mercado do leste asiático, considerando que os preços de comercialização são mais altos nessa região do que na Europa. O aumento da demanda desse energético no mercado asiático, em especial na China, ocorreu em virtude da diminuição da produção de carvão.

A crise energética na Europa se aprofundou desde o início da guerra da Ucrânia, na medida em que as exportações de gás natural da Rússia foram sendo reduzidas e os preços das commodities alcançaram patamares mais elevados.

Plano de emergência

Em junho de 2022, a Gazprom cortou os fluxos ao longo do gasoduto Nord Stream 1 para apenas 20% de sua capacidade e, no início de setembro, a empresa russa interrompeu os fluxos por tempo indeterminado. Com essa medida, os preços de referência do gás natural na Europa subiram 28% na primeira semana de setembro.

Em setembro de 2022, a Comissão Europeia lançou um Plano de Emergência, ainda em fase de discussão, com o intuito de mitigar o impacto da crise de suprimento sobre o mercado de energia.

Entre as diversas medidas em análise, destacam-se:

  • a) a proposta de reduzir obrigatoriamente o consumo de eletricidade em pelo menos 5% durante as horas de pico selecionadas em cada Estado-Membro e reduzir a demanda global de eletricidade em pelo menos 10 % até 31 de março de 2023. Cada país pode implementar medidas específicas para alcançar as metas de redução da demanda, as quais podem incluir compensação financeira.
  • b) a proposta de aplicar uma contribuição temporária sobre os lucros excedentes das empresas de energia a fim de arrecadar recursos para os consumidores de energia, em particular famílias vulneráveis, empresas duramente atingidas com preços elevados e indústrias com uso intensivo de energia. A taxa seria de 33% sobre os lucros excedentes dessas empresas, definidos como lucros acima de 20% dos lucros tributáveis médios auferidos nos últimos três exercícios fiscais. A estimativa é de que essa medida possa arrecadar mais de 140 bilhões de euros.
  • c) a criação de um banco público para financiar projetos de hidrogênio, com investimentos de quase € 3 bilhões.

Considerações Finais

De forma geral, as estratégias de neutralidade de carbono da UE fizeram com que grande parte dos países reduzisse acordos de compra de energia de longo prazo, optando pela adoção de contratos de curto prazo. Com a disparada do preço do petróleo e do gás natural, concessionárias de energia elétrica começaram a buscar combustíveis alternativos, como inclusive o carvão, rompendo com as diretrizes europeias de neutralidade de carbono. O Reino Unido, a França e a Espanha emitiram novos tetos de preços de energia e a França anunciou investimento de 1 bilhão de euros em energia nuclear até 2030. Diversos países também passaram a adotar medidas temporárias para auxiliar os consumidores no período de crise de preços de eletricidade, como o apoio direto à renda para famílias vulneráveis, a redução de impostos e benefícios para empresas com dificuldades financeiras.

Entenda como o governo Bolsonaro atuou para pôr fim à política de valorização do salário mínimo

A atual crise energética na Europa evidencia, portanto, a grande dependência dos combustíveis fósseis, colocando a transição energética como um processo não trivial e dependente de equacionamentos de uma série de problemas de dimensões financeiras, tecnológicas e geopolíticas. Além disso, a forte expansão em energias intermitentes mostrou os riscos da volatilidade de preços da energia e a instabilidade do atual mercado, principalmente tendo em vista a restrita oferta de gás para atender a Europa.

Não há dúvida que o Estado se torna o principal protagonista para equacionar as questões referentes à segurança energética e à mudança climática. Protagonismo este que coloca as decisões políticas como sendo um dos elementos-chave da dinâmica do setor de energia nas próximas décadas. Essas decisões configurarão as estratégias a se adotar para enfrentar, principalmente, os problemas relativos ao suprimento de energia a preços acessíveis e à ampliação da oferta de fontes renováveis de energia para atender os acordos climáticos firmados pela União Europeia.


Lúcia Navegantes Bicalho é graduada em Economia (UFRJ) e mestre em Planejamento Energético (Coppe/UFRJ). Trabalhou na Eletrobras e na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Colaboradora voluntária do Conjuscs.

Artigos desta seção não necessariamente expressam opinião da RBA

Notas

1 Índice para medir o impacto das atividades do homem sobre a natureza, a partir da quantidade de dióxido de carbono que elas emitem.
2 No comércio internacional, o transporte do GNL ocorre por meio de navios metaneiros.
3 Em março de 2022, o chanceler alemão Olaf Scholz anunciou que o país pretende construir 2 terminais de GNL para diminuir a dependência energética da Rússia, pois a falta de infraestrutura impede o recebimento de importação de GNL.