PPP da habitação em São Paulo: política habitacional ou lógica do mercado?

A necessidade de se pensar uma política pública séria é ignorada pelo projeto do governo estadual, que ganhou a parceria da prefeitura para promover uma especulação que não resolverá o problema da moradia

As parcerias público-privadas (PPPs) são concessões do poder público à iniciativa privada, nas quais há delegação do exercício de serviços públicos (normalmente ligados à infraestrutura e a serviços essenciais ao desenvolvimento nacional) aos particulares, com a contraprestação financeira do Estado.

No Brasil, muito embora esse modelo de contratação tenha se consolidado com força a partir da década de 1990, como influência do neoliberalismo nas políticas de Estado, sua regulação se deu no governo Lula, mais precisamente com a vigência da Lei Federal nº 11.079, em 2004.

Recentemente, o governo do estado de São Paulo, por meio da Agência Casa Paulista, anunciou o primeiro projeto de PPP na área da habitação no Brasil, projeto este que agora conta com a parceira da prefeitura da capital.

O conteúdo anunciado pelo poder público consiste na construção de habitações de interesse social em cidades paulistas e, destacadamente, no centro da cidade de São Paulo, num perímetro que compreenderá a região da Sé, e áreas mais centrais como Pari, Barra Funda, Bom Retiro, Luz, Santa Cecília, República, Bela Vista, Liberdade, Brás, Cambuci, Mooca e Belém.

Segundo informações que vêm sendo veiculadas nos últimos meses, serão 20 mil unidades habitacionais para atender à demanda dos trabalhadores que já vivem suas rotinas no centro, mas que atualmente moram longe do trabalho.

É preciso dizer que a luta por moradia no centro de São Paulo para os trabalhadores é marco histórico na cidade, impresso por movimentos populares e entidades não governamentais, que levantam essa bandeira há décadas. Ocorre que o projeto de parceira público-privada, se em aparência parece contemplar essa tradicional reivindicação, quando compreendido em profundidade em muito se distancia daquilo que a população organizada realmente exige do Estado.

Nas suas apresentações sobre o projeto até agora, o poder público não relacionou graves problemas sociais relativos ao déficit habitacional com a intervenção urbanística em questão, como a existência das ocupações e dos cortiços precários na região central e os edifícios ociosos que poderiam ser aproveitados para o interesse social. Além disso, é preciso refletir sobre o fato de que, majoritariamente, os trabalhadores do centro vivem na informalidade, e por isso não poderão pleitear habitação, se for requisitada carteira assinada para comprovar a expectativa de adimplência ao empresário que vender as unidades (reforça-se: os critérios do projeto ainda são gravemente obscurecidos).

Idosos, trabalhadores informais, encortiçados, militantes dos movimentos sociais, dentre outros segmentos, nunca foram chamados pelo governo para a discussão e para elaboração do projeto, nem foram objeto de preocupação na elaboração do plano.

Para qualificar ainda mais as problemáticas do projeto, deve-se ter em conta que a PPP não tem a natureza de política pública de habitação, e nem poderia tê-la. A construção das habitações se dá em torno da lógica de oferta e procura do mercado imobiliário.

A necessidade de se pensar uma política pública séria, que dê conta da complexidade das questões fundiária e urbana, para São Paulo – cidade frequentemente destacada por ser a capital das desigualdades, das políticas de enxotamento da população pobre e trabalhadora das áreas equipadas por serviços públicos essenciais – é ignorada pelo projeto, já que não se prevê nele ações, a longo prazo, que minimizem os evidentes efeitos das intervenções do setor privado imobiliário: a valorização especulativa. Ora, se amanhã será a família pobre a morar na habitação construída pelo projeto, sabemos que depois de amanhã será a classe média a substitui-la, posto que a lógica profunda de valorização dos imóveis no centro não será solucionada.

Dessa forma, é preciso lembrar que outros instrumentos de garantia da moradia popular não são cogitados, como a habilitação dos prédios na região que não cumprem sua função social, e a locação social – principalmente em se tratando do interesse dos idosos e das famílias de renda na faixa de 0 a 3 salários mínimos, cujas condições financeiras não permitem a compra de um imóvel (mesmo em se tratando daqueles de interesse social).

A respeito do cumprimento do Plano Diretor Estratégico (PDE), a parceira público-privada parece ignorar a obrigatoriedade dos Planos de Urbanização serem analisados e deliberados pelos Conselhos Gestores das Zonas Especiais de Interesse Social da cidade, conforme dispõe o PDE de 2002. Tais espaços são compostos por diversos segmentos da sociedade civil; a PPP não pode simplesmente ignorar as eleições deste conselho, haja vista sua competência e seu foco de atuação.

Importante ressaltar que o projeto, talvez por não ter sido construído em conjunto com a sociedade, produz uma série de incertezas que o comprometem mais ainda: critério de renda para os beneficiários, competência para execução do cadastramento dos moradores, cronograma das obras, calendário de audiências públicas, definição das áreas a serem desapropriadas, dúvida sobre a competência para as desapropriações (se será do poder público ou da iniciativa privada envolvida com as obras) e quesitos para caracterizar a qualidade das habitações sociais são apenas algumas das dúvidas que envolvem a PPP.

Segue se afirmando a conclusão sobre o projeto que compartilham os movimentos sociais de moradia e as entidades de direitos humanos: a PPP promove uma ação habitacional sem política habitacional e urbana. O centro de São Paulo, terreno de disputas históricas, não tem resolvida a sua maior contradição com o anúncio do projeto; a especulação imobiliária continuará livre e determinante para o fenômeno de expulsão dos pobres, trabalhadores e minorias. É necessário que o governo do Estado e a Prefeitura apresentem a política habitacional e urbana para o centro da cidade de São Paulo que atenda a população de baixa renda que já reside precariamente nos cortiços e ocupações. Se isso não ocorrer, estaremos lidando com mais programa para atender a especulação imobiliária.

À população organizada cabe a desmistificação e a fiscalização da parceria, sem a ilusão de que ela representaria algo novo nesse contexto. A missão de pressionar os governos para a promoção do direito à moradia digna por meio de verdadeiras políticas públicas não adormece.