Desenvolvimento em Foco

A insurgência contra o desmonte da cultura

Ações da sociedade e projetos legislativos, como o que criou a Lei Aldir Blanc, enfrentam o desmonte da cultura pelo governo Bolsonaro, que até mesmo tenta criminalizar artistas e obstruir projetos

Reprodução/instagram@MarioFriasOficial
Reprodução/instagram@MarioFriasOficial
Bolsonaro e Mário Frias: violações de garantias fundamentais do direito ao acesso à cultura

Em nota técnica na 20ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), tratei sobre a atual insurgência contra o desmonte da cultura no Brasil e as novas políticas públicas em curso para o setor. A íntegra da nota está disponível em https://noticias.uscs.edu.br/cartas-do-observatorio-conjuscs/.

O Setor da Cultura vem sofrendo diversos ataques desde o governo Temer, que tentou extinguir o Ministério da Cultura (MinC), mas sucumbiu à pressão da classe cultural e voltou atrás. Já o governo Bolsonaro tem logrado êxito em sua jornada contra a cultura, iniciada com a extinção do MinC logo no início da gestão, e que seguiu com o esvaziamento da pasta de Cultura, com o desmonte da Ancine (Agência Nacional de Cinema), com o aparelhamento do setor, com uma rotatividade absurda de secretários, a criminalização de artistas e gestores, obstrução de recursos e patrocínios de projetos já aprovados, além de diversas ações de censura, de manipulação ideológica na escolha para o financiamento de projetos, de pronunciamentos da secretaria munidos de citações nazistas e negacionistas da gravidade da pandemia de coronavírus e até de denúncias ao atual secretário Mário Frias por trabalhar armado e ameaçar funcionários.

Em vista de tantas ilegalidades e violações de garantias fundamentais do direito ao acesso à cultura, que desrespeitam compromissos internacionais assumidos pelo país e a própria ordem jurídica, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em maio de 2021, ingressou com uma ação civil pública na Justiça Federal que questiona a política cultural do presidente Jair Bolsonaro, acusando o governo de fazer “verdadeira cruzada contra os sujeitos e apoiadores da cena cultural no Brasil motivada por perseguição de ordem político-ideológica”.

No contexto do isolamento social imposto pela pandemia, o setor da cultura foi um dos primeiros a suspender atividades e sentir os impactos econômicos da crise sanitária. No entanto, esse foi também um dos pilares mais importantes na sustentação da saúde mental das pessoas, que buscam nos produtos de arte e cultura o contato humano possível para um alento da solidão compulsória. Foi a música, o audiovisual, a literatura, os jogos digitais, e tantas outras linguagens possíveis da expressão humana, que tornaram suportável a existência durante o período e trouxeram algum lapso de normalidade e esperança de dias em um melhor porvir.

Após cerca de nove meses de pandemia sem recursos, a Lei Aldir Blanc (LAB), sancionada em agosto de 2020, finalmente começou a atingir seu objetivo de promover renda emergencial ao setor cultural. Foram repassados três bilhões de reais advindos do superávit do Fundo Nacional de Cultura aos Estados e Municípios, que, mesmo com várias dificuldades de gestão percebidas no processo, distribuíram os recursos a artistas e espaços artísticos-culturais locais. Nas cidades do Grande ABC Paulista foram aplicados mais de 17 milhões de reais em ações emergenciais à arte e cultura promovidos pela LAB.  Os municípios que reverteram verbas não aplicadas da LAB ao governo federal e os municípios que não captaram recursos da lei em 2020 puderam requisitar recursos novamente para a aplicação da segunda fase da Lei Aldir Blanc.

Seguindo os principais parâmetros da LAB (Lei 14.017/2020), foi apresentado à Câmara dos Deputados pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) o Projeto de Lei 1518/21 que visa instituir a Política Nacional Aldir Blanc, que criará uma política permanente de fomento ao setor cultural com recursos federais, a ser executada nos Estados, Municípios e Distrito Federal, de forma descentralizada.

Diretrizes e bases para a política cultural

Desde 2018 tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 9474/18, de autoria do deputado Chico D’Angelo (PT-RJ) que propõe a regulamentação do Sistema Nacional de Cultura através do estabelecimento de diretrizes e bases para a política cultural e a garantia dos direitos culturais como a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística e científica; a difusão das manifestações culturais; e a salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens culturais.

O PL 2009/2021, também de autoria da deputada Jandira Feghali propõe a autorização para o Poder Executivo instituir a “Loteria da Cultura”, que determinará que a renda líquida dos concursos lotéricos e os valores dos prêmios não-reclamados pelos apostadores antes do prazo de prescrição sejam destinados ao Fundo Nacional de Cultura e ao financiamento de ações destinadas ao setor cultural. O projeto de lei está na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados.

Lei Paulo Gustavo

O Senado Federal aprovou em 24 de novembro de 2021 o Projeto de Lei Complementar – PLP 73/2021 – conhecido como Lei Paulo Gustavo, em homenagem ao reconhecido ator da comédia nacional contemporânea, que faleceu de covid em maio de 2021, após quase dois meses internado. Apresentado pelo senador Paulo Rocha (PT-PA), o projeto prevê o repasse de mais de 3,8 bilhões para aplicação em ações de emergência ao setor cultural, vedando a limitação de despesas destinadas a apoiar projetos culturais que sejam custeados por fundos criados para tal finalidade. 

O texto da relatoria da lei enuncia que estão cobertas por ela as atividades relacionadas a artes visuais, música popular, música erudita, teatro, dança, circo, livro, leitura e literatura, arte digital, artes clássicas, artesanato, dança, cultura hip hop e funk, expressões artísticas culturais afro-brasileiras, culturas dos povos indígenas, culturas dos povos nômades, culturas populares, capoeira, culturas quilombolas, culturas dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana, coletivos culturais não-formalizados, carnaval, escolas de samba, blocos e bandas carnavalescos e toda e qualquer outra manifestação cultural.


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Semelhante a esta proposta tramita também o Projeto de Lei Complementar 90/2021, de autoria da deputada Aline Gurgel (Republicanos-AP), e que visa a destinar R$ 3,86 bilhões de recursos federais advindos do superávit financeiro do Fundo Nacional de Cultura, destinados em maior parte (R$ 2,8 bi) a projetos não reembolsáveis do setor audiovisual e o restante (R$ 1,06 bi) a demais segmentos culturais, também em projetos não reembolsáveis.

Esses projetos compõem a Agenda Nacional de Cultura e Emergência Cultural, que congrega profissionais, coletivos, instituições e gestores públicos da área num estado de Conferência Nacional de Cultura. Os ataques à cultura, que já eram severos, agravaram-se tanto neste governo que a sociedade tem se reunido, se mobilizado e se articulado em defesa desse bem e direito inalienável que nos confere identidade, unidade e unicidade.

O apagamento da cultura se pagará com mais cultura ainda. Parafraseando Antônio Conselheiro, “O Ministério da Cultura vai voltar por revolta e por revoltação!”.


Camila Faustinoni Cabello: professora, pesquisadora, extensionista, artista e realizadora cultural multilinguagens. Doutora em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestra em Educação e Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Professora na Universidade Municipal de São Caetano do Sul, membro de bancas avaliadoras de concursos públicos. Pesquisadora e coordenadora adjunta do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo, Inovação e Conjuntura da USCS.