Desenvolvimento em foco

O ‘looping’ do Bolsa Família: restrições aos mais pobres no orçamento e apoio à financeirização

População vivendo em situação de extrema pobreza saltou de 4,6 milhões de brasileiros em 2014 para 27 milhões em 2020. Nesse período, o país também fortaleceu a cultura do capital financeiro sobre o capital produtivo

CNM / Divulgação
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Já a partir de 2015 a desigualdade disparou, consolidando-se em 2021

Em nota técnica na 20ª Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) tratamos do tema do Bolsa Família e dos programas de combate à pobreza e desigualdades no Brasil. A íntegra da nota pode ser acessada em https://www.uscs.edu.br/noticias/cartasconjuscs.

O programa Bolsa Família (BF), lançando oficialmente em 2003, contribuiu de forma inequívoca para os avanços dos indicadores sociais no Brasil. No período 2003-2004, a tarefa era migrar os beneficiários dos demais programas para o atual e aumentar a cobertura de transferência de renda para famílias que ainda não recebiam algum benefício por meio de um sistema denominado CadÚNICO. No período 2005-2006, o programa apresentou melhorias significativas com seu aperfeiçoamento e com a assinatura dos termos de adesão com os municípios, dando transversalidade ao programa e mais autonomia às cidades.

Com isso, o percentual de cadastrados foi de 31% para 92%. Em outubro de 2006, 11 milhões de famílias estavam sendo beneficiadas e, em 2010, esse número era de 13 milhões de famílias. Dos três milhões de famílias atendidas inicialmente, o programa alcançou 14 milhões de famílias em 2015, 13,2 milhões em 2020 e, mais recentemente, com a substituição do nome do programa para Auxílio Brasil, não se sabe ao certo quantas passarão a ser atendidas.

Em 2003, 7,7% da população brasileira vivia em situação de extrema pobreza; em 2014 este número chegou ao patamar histórico de 2,34%, tirando o país do mapa da fome global e tornando-o referência internacional de combate à pobreza extrema. Naquele ano, o BF atingiu um marco importante, segundo a Organização para Alimentação e Agricultura (FAO) e o então Ministério do Desenvolvimento Social: redução de 82% da população considerada em situação de subalimentação, tirando o Brasil do mapa da fome da ONU.

Mas os impactos do BF vão além da distribuição da renda: 3,4 milhões de pessoas saíram da linha de extrema pobreza; redução de 16% da mortalidade infantil (nas famílias mais pobres e as com mães negras a redução chegou a 28% e 26%, respectivamente); aumento da participação escolar feminina (impulsionada pela criação do programa Benefício Variável Jovem (BVJ), redução da desigualdade regional (cerca de 9%); melhora dos indicadores de insegurança alimentar (pesquisa com 5 mil beneficiários apontou que 87% gastavam o benefício com alimento e 70% afirmaram aumentar quantidade e variedade); efeito multiplicador do PIB (cada R$ 1 gasto com o Bolsa Família gera impacto de R$1,78 no PIB, sendo que quanto maior a focalização nos pobres maior o impacto); queda da fecundidade feminina (não se pode atribuir a queda ao programa, mas ele não causou aumento da fecundidade na tentativa de aumentar o benefício) e 69% dos beneficiários iniciais deixaram o programa.

Apesar de todo o esforço nacional para superar a pobreza desde então, é a partir de 2015 que há uma inflexão nas políticas de combate à pobreza. O percentual da população vivendo em situação de extrema pobreza saltou dos 2,3%, em 2014 (4,6 milhões de brasileiros), para 12,8% em 2020 (27 milhões de brasileiros), ultrapassando, inclusive, os dados de 2003 (14 milhões de brasileiros). Pelo indicador Gini, que mede o grau de concentração de renda, até 2014 vínhamos numa trajetória de queda, mas, já a partir de 2015, a desigualdade disparou, consolidando-se em 2021.

Desde 2015, fortaleceu-se no país a cultura do capital financeiro sobre o capital produtivo. A título de exemplo, em 2019, período pré-pandemia, os gastos federais com o pagamento de juros e amortização da dívida somaram R$ 1 trilhão, enquanto os gastos sociais somaram R$ 1,2 trilhão.

Em 2020, os gastos com juros somaram R$ 1,4 trilhão (variação de R$ 343 bilhões, 17% a mais do que se gastou com o Auxílio Emergencial) e os gastos sociais 1,7 trilhão. Em termos relativos, nada mudou na migração dos recursos oriundos dos impostos para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública nos anos recentes, que continuam no nível dos 45% do orçamento público, principalmente no contexto de urgência sanitária.

Enquanto se discutia, com todos os “esforços” políticos, os limites legais de aprovação da PEC dos Precatórios, por outro não se falava do “desvio” de recursos do orçamento para garantir o financiamento da dívida pública. Apenas a elevação da taxa Selic neste dezembro, de 7,75% para 9,25%, exigirá do orçamento público para o próximo ano R$ 80 bilhões de reais adicionais para o pagamento de juros da dívida pública. Isto representa três programas Bolsa Família! Nem seria necessária a votação da PEC dos Precatórios caso a política econômica estivesse orientada para a promoção do emprego, da renda e da ampliação dos investimentos públicos.

Os seus efeitos multiplicadores são inequívocos sobre o PIB das cidades e sobre o perfil de renda.  Para cada unidade gasta no BF, por exemplo, o efeito sobre a economia local é de R$ 1,78. Ou seja, o gasto estimado de R$ 34 bilhões do BF no ano de 2020 impactará positivamente na geração de renda adicional de R$ 60,5 bilhões.

Além dos benefícios econômicos diretos, têm-se também os indiretos, como a melhoria da produtividade dos beneficiários em função da melhora das condições de acesso à educação e saúde, cujas condicionalidades são uma característica do programa.  A concessão do benefício do Bolsa Família é condicionada ao cumprimento de alguns requisitos pelos beneficiários, podendo ser cancelado em caso de descumprimento.


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Em outubro foram transferidos aos sete municípios R$ 8,5 milhões. Até o final de 2021, estimamos que sejam transferidos R$ 102 milhões. A amplitude dos benefícios nos sete municípios do Grande ABC não representa valores extraordinários quando comparado ao PIB da região (R$ 110 bilhões). São Bernardo, Santo André e Diadema são os municípios que recebem os maiores valores. Em termos de valor médio recebido (benefício por família), com exceção de Rio Grande da Serra, o valor médio de repasse é similar.

Outros dados chamam a atenção: 87 mil famílias, ou 240 mil pessoas, são atendidas anualmente pelo programa, sendo que as mulheres representam 85% dos responsáveis pela família. O valor médio pago por família é de R$ 97,00; e por pessoa, R$ 35,00. São Bernardo do Campo e Ribeirão Pires são os dois municípios cujo valor médio por família é maior (R$ 101,34 e R$ 100,72 respectivamente).

A partir de estudos de efeitos multiplicadores, o impacto dos gastos das famílias na economia da região girará em torno de R$ 182 milhões. Ao receber o benefício, as famílias o destinam à aquisição de produtos alimentícios e de bens de uso pessoal, dinamizando a economia local, mantendo níveis de emprego, renda e produção locais, o que leva à maior arrecadação de tributos dos municípios e mantém sua capacidade de implantar políticas de desenvolvimento humano, como saúde e educação.

Ainda que cercado de incertezas, o “novo” Bolsa Família aprovado pelo Congresso, agora intitulado Auxílio Brasil, se por um lado reserva os R$ 35 bilhões de financiamento, por outro corre o risco de sofrer de subfinanciamento em razão das políticas econômicas erráticas dos anos recentes, baseadas em corte de gastos, limitação de diretos trabalhistas, diminuição da renda promovida pela recessão econômica e, mais recentemente, pela elevação da taxa de juros para controlar a inflação, que só no próximo ano exigirá do orçamento público um adicional de R$ 80 bilhões para o pagamento de juros da dívida, além dos atuais R$ 300 bilhões anuais já pagos.

Se avançarmos no debate sobre a construção de políticas de geração de renda e emprego ao invés de apostar em austeridade fiscal infindável, talvez tenhamos chances de retomar o fio condutor do crescimento econômico, da ampliação dos empregos, do financiamento mais robusto dos programas sociais e da melhoria do perfil de distribuição de renda. Devemos olhar mais para a produção e renda do que para a financeirização.


Alessandra Santos Rosa. Mestra em Administração pela USCS. Graduada em Economia pela USCS. Atuou como Professora auxiliar na USCS e Professora na Universidade Anhanguera. Foi assessora econômica na Secretaria de Desenvolvimento Econômico de São Bernardo do Campo; Coordenadora de Desenvolvimento Econômico da Cidade de São Paulo, e Assessora Econômica e de Inovação na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Trabalho, Turismo e Inovação de Hortolândia. Atualmente está como Assessora na Reitoria da USCS.

Volney Gouveia. Coordenador do curso de Ciências Econômicas e Ciências Aeronáuticas da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. É doutor em Ciências Humanas e Sociais da UFABC. Mestre em Economia pela Universidade Cândido Mendes. Pós-Graduado pela Universidade Anhembi Morumbi e economista pela FAAP-SP. Atua nos temas de aviação há 30 anos. Professor de Economia no Instituto Mauá de Tecnologia. Autor do livro A Economia do Transporte Aéreo no Brasil: Novos Ares para o Desenvolvimento da Aviação, lançado pela Editora Didakt, da USCS.


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