Desenvolvimento em Foco

Semelhanças e diferenças entre a gripe espanhola e a covid-19

Há inúmeras semelhanças entre gripe espanhola e covid-19 separadas por um século. E algumas diferenças. A principal delas está na atuação dos órgãos federais

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Carlos Chagas, referência científica há um século, era ouvido por autoridades e liderou enfrentamento à gripe espanhola. Um século depois, a ciência é desprezada pela principal autoridade do país

A análise comparativa das reações sociais e governamentais entre a gripe espanhola (1918-1921) e a covid-19 (2020-?) no Brasil indica muitas semelhanças. Entre elas, a difusão de medicamentos ineficazes alardeados como soluções. Mas também traz relevantes diferenças, com destaque para a ação, a omissão e o discurso das autoridades públicas.

Ambas as doenças vieram do Exterior, pelos meios de transporte, e ambas foram desacreditadas no início, como uma espécie de alarme falso ou exagerado. Em ambas, a semelhança com a gripe comum causou falsa impressão inicial de conhecimento da doença. Além disso, ambas reforçaram a desigualdade social existente: os primeiros disseminadores eram viajantes vindos do Exterior, geralmente das camadas de renda média e alta; mas a contaminação atingiu rápida e amplamente os grupos de baixa renda, dadas suas condições socioambientais. 

Prosseguindo com as semelhanças, em ambas, houve teorias conspiratórias: na gripe espanhola, os dois lados na Primeira Guerra Mundial acusavam-se reciprocamente; na covid-19, a disputa Estados Unidos-China afetou as responsabilizações. Também nos dois casos, medicamentos “fantásticos”, jamais confirmados pela ciência, tiveram seus dias de glória: grippina e quinino, na Espanhola; cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina na covid-19. A curiosidade é que a cloroquina, há muito tempo, passou a substituir o quinino no combate à malária, com eficácia e validação da ciência. Outra semelhança significativa é a repulsa ao uso de máscaras por segmentos minoritários, porém barulhentos.


Artigo extraído da 17ª Carta do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Conjuscs)


Um aspecto notável é o do avanço simultâneo do conhecimento e da ignorância, no século entre as duas pandemias. O que explica que, não obstante o grande avanço e popularização do conhecimento científico, argumentos anticientíficos continuem a prosperar um século após? A hipótese básica é que o negacionismo científico, antes restrito a grupos articulados em torno de interesses religiosos ou econômicos específicos, e aos amantes de teorias da conspiração, tem ganhado corações e mentes nos últimos anos por intermédio das redes sociais.

Com a chegada da covid-19, o fenômeno se intensificou. E, assim, o que era a contracorrente tornou-se, em alguns casos, discurso oficial e política de Estado. Esse processo de institucionalização do negacionismo na figura de líderes políticos teria comprometido a eficácia das medidas de combate à pandemia em países como Brasil, Estados Unidos e Reino Unido.

A saúde pública é outro tema em comum. O Brasil da Velha República praticamente não possuía nada digno desse nome. Mas, um século depois, o SUS sofreu sucessivos cortes e desativações no quinquênio 2015-2020. Com isso, 40 mil leitos foram desativados no início da covid-19. Houve fortes restrições orçamentárias para a compra de equipamentos e contratação de novos profissionais, resultando no trabalho hercúleo (e heróico) dos profissionais da saúde. 

Durante a gripe espanhola, destacou-se o sanitarista Carlos Chagas no comando das ações de combate à pandemia. Mas bem diferente foi o percurso da saúde pública no Brasil da covid-19. Dois médicos sucederam-se no Ministério da Saúde, buscando cumprir protocolos científicos, mas o confronto não foi com a imprensa ou a opinião pública, como em 1918-1919. Agora, o bloqueio veio do chefe do Executivo e suas diretrizes, em confronto direto com as entidades médicas nacionais e internacionais e com a comunidade científica.


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O terceiro ministro da Saúde, um general, preencheu diversos cargos de responsabilidade do órgão com membros de sua corporação. Assim, os sucessivos desencontros com a comunidade médica e científica culminaram com a tragédia sanitária e humana em Manaus. O quarto ministro, empossado no final de março de 2021, adota discurso mais consentâneo com a comunidade médica, mas entra cercado de ceticismo pela sociedade.

“Em 1918, não tínhamos nenhuma autoridade política ou científica apoiando o uso de sal de quinino, como Bolsonaro faz hoje com a cloroquina”, compara a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, professora da USP e da Universidade Princeton, nos Estados Unidos.

“Ao contrário do que aconteceu no início do século 20, vemos hoje uma vontade deliberada do governo de sabotar todas as medidas de prevenção e contra a disseminação do coronavírus”, analisa o professor João Malaia, da Universidade Federal de Santa Maria. Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o principal ponto que separa as crises da gripe espanhola e da covid-19 está na atuação dos órgãos federais.

Os governantes da época da gripe espanhola, como alguns da covid-19, também começaram negando a crise e criticando o suposto alarmismo da imprensa. Mas logo convenceram-se da necessidade de adotar providências mais drásticas. “As autoridades sanitárias recomendaram que as pessoas se mantivessem em casa e não fossem aos locais públicos. Decretos proibiram algumas práticas bastante comuns no período, como cuspir no meio da rua”, conta historiadora Daiane Silveira Rossi, pós-doutoranda pela Fiocruz e Faperj. A situação exigiu a construção rápida de hospitais de campanha e locais para isolamento de infectados.


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Na atualidade, uma Comissão Parlamentar de Inquérito apura as ações e omissões do Poder Executivo. Pesquisa da Universidade de Michigan e da Fundação Getulio Vargas mostra que o Brasil tinha os mecanismos necessários para combater a covid-19, mas o presidente optou pela ‘pseudociência’ e pelo ‘negacionismo’.

Na espanhola, durante a República Velha, houve desencontros com o governo federal. Mas, enquanto a pandemia arrefecia na capital federal, ocorrências dramáticas em alguns estados eram tratadas como “problema dos presidentes” (governadores) pelo chefe do governo federal. Já agora, o presidente empenhou-se em guerra com os governadores, buscando travar suas ações e responsabilizá-los pelos insucessos.

Segundo estudo da Universidade de Michigan e FGV, o resultado só não foi mais trágico porque o país tem infraestrutura de vigilância sanitária desenvolvida para lidar com pandemias. Desse modo, rede de atenção primária do Sistema Único de Saúde foi essencial para mitigar o impacto da Covid19. A atuação dos estados e prefeituras também ajudou a controlar o caos no País.


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Importante registrar a campanha ativa contra a vacinação por parte do presidente da República ao longo do ano de 2020 e no primeiro bimestre de 2020. O jornal francês Le Figaro notou que a campanha do presidente contra a imunização, afirmando que não vai tomar a vacina e criticando a iniciativa do STF de torná-la obrigatória, foi “uma atitude singular e única nas democracias”. Le Figaro destaca que o Brasil tem uma experiência reconhecida na produção de vacinas e em campanhas de imunização da população, “graças a instituições de pesquisa renomadas como o Instituto Butantan e a Fiocruz”.

Em conclusão, identificam-se inúmeras semelhanças entre os eventos relacionados à gripe espanhola e à covid-19, separados por um século. As duas diferenças mais expressivas são a produção de desinformação e descrédito na ciência e na informação das mídias convencionais, no caso da Covid, em escala muito superior à do passado, envolvendo o núcleo governante e círculos ao seu redor, com grande capilaridade por meio das redes sociais; e na atitude do governante máximo e sua equipe – com descarte dos destoantes –, de contrapor-se aos protocolos e recomendações do meio científico e das entidades médicas.

Atitudes negacionistas e de crítica ao suposto alarmismo da imprensa foram comuns aos dois casos examinados, no momento inicial. Mas apenas no caso da covid essa atitude manteve-se, até a terceira troca ministerial, em meio a crescente pressão nacional e internacional, um ano após o início da pandemia no país. Os resultados, de gravidade e destaque internacional muito maiores no último caso, guardam forte relação com essas diferenças.


Roberto Vital Anav é economista (FEA-USP), doutor pela UFABC e professor na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Autor de O Retorno de Karl Marx: a redescoberta de Marx no século XXI

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