Memória

Morre aos 72 anos Renato Pompeu, um mestre do jornalismo brasileiro

Pompeu participou do nascedouro de grandes projetos, ganhou prêmios, escreveu 22 livros. Dizia que o conceito de jornalismo que desenvolvera ao longo da vida deixou de ser possível na imprensa de hoje

Reprodução TV Cultura

Pompeu se dizia um filósofo do futebol e jornalista por falta de originalidade: ‘Segui meu pai e meu avô’

A morte do jornalista Renato Pompeu, 72 anos, na manhã deste domingo (9), pegou de surpresa amigos e familiares. Até a véspera vinha abastecendo regularmente seu blog. E poucos dias antes havia pedido, por meio de seu perfil no Facebook, ajuda para conseguir frilas. Renatão morreu enquanto era levado para a emergência do Hospital do Servidor. E deixou uma rica bagagem de 50 anos de profissão.

Participou da criação do Jornal da Tarde, em 1966, da revista Veja, em 1968, do projeto de renovação da Folha de S. Paulo liderado por Cláudio Abramo, no final dos anos 1970, e trabalhou também no Estadão, nos anos 1990. Escreveu 22 livros, dentre eles muitas incursões filosóficas por diversas áreas, sempre que possível com um olhar marxista sobre as coisas – da sociologia à economia, passando pelo futebol e a loucura. Pompeu é um dos raros estudiosos de Karl Marx a ainda buscar atualidade na leitura e na releitura da obra do pensador alemão.

“Quando Marx fala em ‘ditadura do proletariado’, como fase transitória da passagem do capitalismo para o socialismo, ele não se refere a um regime autoritário, mas a um regime com plena liberdade de expressão e de organização, exatamente como acontece nos regimes capitalistas mais avançados, as chamadas democracias burguesas, em que para Marx prevalece a ‘ditadura da burguesia’. Podemos dizer que, nessa crítica efetuada por Marx (Crítica ao Programa de Gotha, de 1875), a ‘ditadura do proletariado’ difere da ‘ditadura da burguesia’ exatamente por ir progressivamente democratizando o controle dos órgãos e empresas estatais por parte da sociedade”, escreveu certa vez na Revista do Brasil. “Se isso é ou não uma utopia, é outra conversa. É importante discutir como os seres humanos poderiam viver melhor, mas isso não deve eliminar a necessidade de verificar concretamente como as pessoas vivem e como gostariam de viver. Para mim, o mais impressionante é que apenas o tempo equivalente a duas vidas minhas até agora nos separa dessas cogitações de Marx.”

Renato Pompeu brincava que entrou no ofício por falta de imaginação, seguiu o pai e o avô, e que gostou mais de trabalhar com enciclopédias – trabalhou nos anos 1980 na Larousse Cultural, então uma referência, num tempo em que se alguém previsse a existência de Google ou Wikipedia seria louco.

Com a loucura, aliás, passou a conviver desde o dia em que foi parar numa sala de tortura por uma semana, no início dos anos 1970. Levou pancadas com cabo de vassoura e choques. Passou a sofrer mania de perseguição e a ter alucinações, até ser internado pela primeira vez, entre janeiro de 1974 e agosto de 1975, no manicômio do Juqueri. E voltaria a passar por processos de internação outras vezes.

Tanto por reconhecer a perversidade como por confrontar-se com algum benefício das terapias de hospício, deu grande contribuição à luta antimanicomial, embora setores do movimento o criticassem por admitir a validade das internações – ele contava que quando não se aguentava mais, ele próprio achava melhor se internar. “Saiba você, que leu alguma das minhas reportagens dos tempos de Veja ou de Folha ou JT, inclusive premiadas, que pode ter lido uma reportagem feita por um louco”, provocava.

Há pouco mais de quatro anos, Pompeu procurou a Revista do Brasil para oferecer colaborações eventuais. Perguntou ao editor – este que ora escreve – se podia mandar o currículo. O editor riu, constrangido, e respondeu: “O senhor dispensa apresentação; se enviar, só servirá para este editor colocar em seu próprio currículo que recebeu, para apreciação, o currículo de Renato Pompeu”. E começou uma amizade fraterna e praticamente virtual, de raros encontros ao vivo, e respeitosa e prazerosa de parte a parte. Chegou confidenciar textos jamais publicados à espera de uma opinião sincera. E nos ensaios que enviava, dizia para ajeitar como conviesse, ostentando sempre nada mais do que uma simplicidade e uma dignidade profissional raramente encontradas num personagem de sua estatura.

No final do ano passado, Pompeu participou de um encontro reservado de jornalistas e intelectuais promovidos pela Carta Maior. Apresentou-se aos demais como um colaborador das revistas Caros Amigos, Carta Capital, Retratos do Brasil,Revista do Brasil e do Diário do Comércio. Dizia que não via mais sentido na dita “grande mídia” e que o conceito de jornalismo que desenvolvera ao longo da vida deixou de ser possível na imprensa de hoje.

Neste domingo, foi-se embora sem saber que sua Ponte Preta venceria o São Paulo por 2 a 1 em Campinas, cidade onde nasceu e aprendeu a “sofrer da condição de ponte-pretano”.

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