Lembrando da memória de García Márquez

O artigo pode ser lido na íntegra na página da Carta Maior.  Gabriel García Márquez sempre foi dono de uma memória sem limites, e, agora, essa memória se desvaneceu. Disse, […]

O artigo pode ser lido na íntegra na página da Carta Maior

Gabriel García Márquez sempre foi dono de uma memória sem limites, e, agora, essa memória se desvaneceu. Disse, ao longo da vida, que não há uma só linha, em toda a sua obra, que não tivesse como ponto de partida um dado da realidade. Ou seja: um dado guardado, intacto, em sua memória. Assim ele escreveu tudo que escreveu. Bem: essa memória se acabou. E, com ela, se acabou a escrita mais luminosa das últimas muitas décadas da literatura feita na América de todos nós.

Ninguém combinou nada com ninguém, nada foi pedido a quem quer que fosse, mas existia uma espécie de pacto silencioso: não mencionar, fora de círculos absolutamente restritos e da mais rigorosa confiança, que Gabriel García Márquez perdia, pouco a pouco no princípio, e rapidamente depois, a memória. 

Começou há alguns anos. Mas foi a partir dos últimos quatro que o processo se acelerou. As declarações emocionadas de seu irmão caçula, Jaime, na semana passada, correram mundo e acabaram escancarando o assunto. Ele não foi o primeiro a romper aquele pacto não declarado: um mês antes, o jornalista colombiano Plínio Apuleyo Mendoza mencionou a perda de memória do escritor. 

Há algum tempo circulam rumores sobre o estado de saúde de García Márquez. São especulações de todo tipo, e o que fizeram Plínio Apuleyo Mendoza primeiro, e Jaime depois, serve ao menos para esclarecer alguns pontos. 

O jornalista, amigo de García Márquez há mais de meio século, seu compadre, foi mais contido. Relatou que durante um longo tempo os dois se falavam por telefone quase todas as semanas. E que, a partir de determinada época – ele não disse quando – García Márquez deixou de ligar. Daí em diante, já não se falaram. Sempre que ele telefonava para o México, ouvia alguma desculpa delicada e viável. A explicação veio, enfim, de um dos filhos de García Márquez, que contou que seu pai não reconhecia mais as pessoas pela voz, só pessoalmente. E que por isso já não atendia as ligações. 

Jaime foi caudaloso em suas declarações. Contou que ele e o irmão mais velho se falam por telefone quase todos os dias, e que o tema das conversas é recorrente: García Márquez pede que o ajude a lembrar fatos passados. Disse que o irmão sofre de demência senil, um mal comum na família. Afirmou que há anos ele não escreve nada, e que não tornará a escrever. Estive com Jaime em Cartagena das Índias outubro de 2010. Numa de nossas muitas conversas ele me disse que a doença do irmão estava em estado avançado. 

Menos de um ano depois, estive com Mercedes e Gabriel García Márquez, em sua casa na Cidade do México. Foi uma conversa longa, de quase três horas. Durante esse tempo, ele falou muito pouco. Entrava em longos silêncios, mas cada vez que eu pressentia que estava alheio ao que Mercedes e eu dizíamos, ele intervinha. Eram comentários curtos, disparados entre sorrisos. A certa altura, perguntou por quê meu filho Felipe, que estava comigo no México e ele conhece desde os quatro anos de idade, não tinha ido vê-lo. E voltou a um silêncio profundo e prolongado.