Ucrânia

Quem não quiser rezar, não reze. Mas pelo menos torça pela paz

Departamento de Estado/EUA O chanceler russo Serguei Lavrov e o secretário de Estado dos EUA, John Kerry: nada como um diálogo O secretário de Estado John Kerry, dos Estados Unidos, […]

Departamento de Estado/EUA

O chanceler russo Serguei Lavrov e o secretário de Estado dos EUA, John Kerry: nada como um diálogo

O secretário de Estado John Kerry, dos Estados Unidos, e o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, anunciaram depois de uma conversação telefônica a convocação de uma cúpula quadripartite para tentar uma solução negociada e diplomática para a crise na Ucrânia. Além dos países, participariam o governo ucraniano e a União Europeia.

A iniciativa – quem tem pela frente uma pedreira de problemas para resolver – é mais do que bem-vinda. Por mais complicada que seja, só uma atitude desta ordem poderá chegar a uma solução duradoura que evite o pior cenário, o de um confronto militar ou da perpetuação da situação de beligerância entre as partes ucranianas, que pode facilmente descambar para aquele confronto.

Apesar das declarações incendiárias de falcões ocidentais, a Rússia não tem o menor interesse – como apontam analistas mais independentes e equilibrados – numa invasão de outras províncias ucranianas, agora que já recuperou o território da Crimeia. O movimento de tropas para além das suas fronteiras, provocaria uma instabilidade de consequências imprevisíveis nas vizinhanças, além de levar inquietação a outras regiões, como Báltico, Polônia, Bálcãs e outras repúblicas vizinhas no continente asiático.

O interesse mais do que claro da Rússia é manter – por razões econômicas, militares e culturais – a Ucrânia parcialmente dentro de sua área de influência. Por isso mesmo tem necessidade de evitar o confronto militar, coisa que jogaria definitivamente a Ucrânia para o “outro lado” – a União Europeia e, pior ainda para Moscou, a Otan. Esta, sempre com as garras afiadas, pode até ter sonhado com a extensão de seu império até uma fronteira do tamanho da que divide/une a Ucrânia e a Rússia.

Acontece que Moscou não pode permitir uma coisa dessas – fato reconhecido até pelo ex-chanceler alemão Helmut Schmidt, que vem criticando os políticos atuais da União Europeia pelo que julga ser uma atitude ao mesmo tempo algo ingênua, provocativa e ávida diante de Moscou e da crise na Ucrânia.

Apesar do enfraquecimento de seu ex-Exército Vermelho (que vem sendo reequipado pelo governo de Putin), a Rússia ainda é uma potência basicamente terrestre, embora disponha de um arsenal balístico de longa e média distância nada desprezível. Ao contrário, os Estados Unidos continuam sendo uma potência basicamente naval, enquanto a Otan, com suas novas funções (dos últimos 20 anos) de força policial nos Bálcãs e no norte da África, tem reforçado seu potencial aéreo, com o concurso, basicamente, dos Estados Unidos, mas também de outros países, como França, Reino Unido e Itália.

Assim, o governo de Moscou tem de administrar ciosamente cada centímetro do território físico sobre o qual possa ter influência. Se não pode permitir a proximidade demasiada da Otan, com seus aviões e mísseis, também não pode se envolver em conflitos fronteiriços: já tem problemas suficientes com as Georgias, a Chechênia, o Daguestão e áreas semelhantes.

Sobre a Ucrânia a Rússia tem duas propostas centrais, nada descabidas. Uma é uma maior federalização do país, permitindo às províncias do leste maior autonomia em relação a Kiev; a outra é a manutenção da língua russa como oficial nas províncias que assim o desejarem, coisa que o novo governo central ucraniano proibiu, numa de suas primeiras medidas.

As propostas seriam aceitáveis para os Estados Unidos, desde que o governo russo se comprometa com uma certa desmilitarização da fronteira com a Ucrânia. Aos EUA interessa manter as portas abertas para uma influência crescente das economias ocidentais sobretudo no oeste do país, e para a realização de manobras militares limitadas entre a Otan e os exército ucraniano, como acontece hoje. É menos aceitável para a União Europeia, por seus laços mais próximos com o governo de Kiev, para quem até o momento as propostas são inaceitáveis, sobretudo para os belicosos membros da direita e da extrema-direita, o Partido Svoboda, responsáveis ainda esta semana por cenas de pugilato explícito no Parlamento Nacional.

O sucesso das conversações vai depender, portanto, da capacidade de convencimento dos Estados Unidos em relação a UE e de ambos em relação a seus aliados ucranianos. Entre esses aliados, diga-se de passagem, não se devem contar os partidários da extrema-direita, para quem só interessa manter o tom agressivo em relação a Moscou e o nacionalismo xenófobo e exaltado em relação aos estrangeiros.

A Rússia tem argumentos poderosos para dobrar os ucranianos mais sectários. A Gazprom, a estatal russa que controla a produção e exportação de gás natural, fornece praticamente todo o gás que a Ucrânia consome. Esta tem uma dívida de US$ 2,2 bilhões e ameaça cobrá-la à vista; por outro lado, a estatal acaba de majorar o preço do produto em 80%, elevando-o para US$ 485,50 por mil metros cúbicos. E Putin acenou com a possibilidade de exigir que a Ucrânia pague adiantado pelo gás que comprar. Esse conjunto de ameaças, se levado adiante, é capaz devastar a Ucrânia mais do que qualquer invasão militar.

Assim como o governo de Kiev terá de desarmar os seus falcões (e de momento não parece decidido a fazê-lo, pelo menos com a amplitude necessária, porque necessita dos votos do Svoboda no Parlamento), a Rússia teria, teoricamente, de procurar fazer o mesmo em relação aos seus partidários também afalcoados pelo menos nas cidades de Donetsk e Luthansk, que continuam a ocupar prédios públicos e querem promover um plebiscito separatista em maio, com as eleições nacionais.

Um outro problema não desprezível está na – ora vejam, ela não morreu! – velha luta de classes. O leste da Ucrânia é a região mais industrializada e próspera do país. Tem um movimento de trabalhadores significativo que, aliás, não é majoritariamente favorável à integração/aproximação do país com a União Europeia, com o que esta traz de políticas recessivas e de “flexibilização” de direitos trabalhistas. É bom lembrar que os separatistas de Donetsk anunciaram que querem instalar uma “República Popular” na província, o que pode ser fonte de dor de cabeça até mesmo para o a essa altura ex-camarada Putin. Mas a região abriga também um conjunto de poderosos oligarcas, que dominam a política e os governos da região. Essa tensão pode trazer mais altas temperaturas para os confrontos políticos.