Hipocrisias

YouTube desobedece suas regras, e faz dinheiro com negacionismo climático

Diretrizes que proíbem monetização de vídeos que negam influência humana no aquecimento global não atingem conteúdos de desinformação. Reportagem da Pública destaca bolsonaristas e ruralistas como principais responsáveis pelas fake news climáticas

CardMap/Unsplash/Domínio Público
CardMap/Unsplash/Domínio Público

Pública – Quem busca por “aquecimento global” na barra de pesquisa do YouTube recebe como retorno vídeos negacionistas e desinformativos sobre a mudança climática, mesmo que o tema já seja consenso entre cientistas da área e a própria plataforma já reconheça que as atividades humanas contribuem para o fenômeno. Dentre os responsáveis pelas fake news climáticas, destacam-se bolsonaristas e ruralistas, como revela uma investigação inédita da Agência Pública.

A reportagem simulou uma busca na plataforma por meio da ferramenta YouTube Data Tools e obteve dados diretamente do algoritmo de recomendação da rede. Dos 121 vídeos analisados, 37 apresentaram informações que contradizem o consenso científico sobre as mudanças climáticas potencializadas pela ação humana, o que representa 30,5% da amostra. Destes, ao menos 15 vídeos são monetizados, ou seja, geram dinheiro para seus publicadores e para o YouTube por meio da disseminação de mentiras sobre o clima. 

Boa parte do conteúdo que nega a existência do aquecimento global é respaldado pelos argumentos de dois cientistas, Ricardo Felício e Luiz Carlos Molion, que aparecem em 70% dos vídeos negacionistas da amostra. Os dois pesquisadores que contradizem a ciência já foram financiados pelo agronegócio brasileiro. 

De acordo com as próprias regras do YouTube, esses conteúdos não deveriam enriquecer seus produtores. Em 2020, a ONG Avaaz solicitou à plataforma que deixasse de recomendar conteúdos “tóxicos” e barrasse a monetização dos vídeos ligados ao negacionismo climático.

Em outubro de 2021, a rede se comprometeu apenas com uma das reivindicações e proibiu a monetização de conteúdo e anúncios que “contradizem o consenso científico sobre a existência e as causas das mudanças climáticas”, o que inclui “material que se refere às alterações no clima como se fossem mentira ou um golpe, com afirmações negando que as tendências de longo prazo mostram um aumento na temperatura global, e dizendo que as emissões de gases do efeito estufa ou as atividades humanas não contribuem para esse cenário”. 

Desinformativos

Mas os conteúdos persistem. Entre as contradições mais frequentes encontradas na busca estão a negação da influência humana ou a apresentação do tema como se ainda houvesse debate entre os cientistas sobre as causas do aquecimento global. É o caso do vídeo monetizado intitulado “O aquecimento global é uma farsa? E se for verdade?”, do canal Fatos Desconhecidos, que foi publicado em abril de 2017 e atualmente conta com mais de 320 mil visualizações. Nele, o apresentador traz argumentos dos “dois lados” para que o público chegue a uma conclusão sobre o “suposto aquecimento global”. O canal tem hoje mais de 18 milhões de inscritos.

Vídeo com teor desinformativo conta com mais de 320 mil visualizações (YouTube/Reprodução)

“O YouTube está basicamente incentivando as pessoas a disseminarem desinformação”, avalia Joachim Allgaier, pesquisador e doutor em comunicação e sociedade digital na universidade alemã Hochschule Fulda. Em 2019, Allgaier estudou a prevalência do negacionismo climático no YouTube e identificou que “a maioria dos vídeos” analisados trazia “visões de mundo opostas ao consenso científico”, incluindo a negação do aquecimento global antropogênico e teorias de conspiração. 

Para o pesquisador, vídeos como o publicado pelo canal Fatos Desconhecidos criam uma “falsa equivalência”. “Geram a impressão de que a opinião de alguns cientistas minoritários é tão importante quanto a opinião de muitos, muitos e muitos milhares de cientistas especialistas no tema”, explicou à reportagem. Um estudo publicado em 2013 na Environmental Research Letter mostra que 97,1% dos artigos que abordaram a influência humana nas mudanças climáticas em 20 anos de produção científica garantiram que ela afeta o clima mundial. 

Outro conteúdo monetizado encontrado no levantamento é o vídeo “Como REFUTAR o aquecimento global antropogênico? PARA LEIGOS!”, do canal Ciência Sem Fronteiras – Thiago Maia Oficial, que soma 57 mil inscritos. Em suas redes sociais, Maia afirma ser embaixador da América do Sul da Clintel, organização internacional que defende que não existe emergência climática.

Dinheiro manda

O canal de Maia é o que mais aparece na amostra analisada pela Pública: o youtuber já publicou nove vídeos sobre o aquecimento global, todos negando a existência do fato científico. Ao menos quatro são monetizados. Somados, os nove conteúdos chegaram a mais de 217 mil visualizações, 22 mil curtidas e 1.435 comentários.

De acordo com a ferramenta SocialBlade, o canal de Maia, que existe desde 2011, rende entre US$ 17 e US$ 269 por mês, o que na cotação atual do real (4,82) equivale a R$ 82 e R$ 1.299 por mês. O youtuber mantém ainda outros três canais sobre ciência na rede.

Com 290 mil visualizações, o vídeo “Ricardo Felício: Aquecimento global serve para mascarar os problemas da humanidade”, publicado pelo canal Pânico Jovem Pan em 23 de julho de 2019, também se destaca. Nele, o meteorologista critica o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) por supostamente mostrar apenas “o pior” cenário “para ameaçar as pessoas”. Nos últimos anos, a Jovem Pan tem sido criticada pelo alinhamento ao bolsonarismo e pela disseminação de informações falsas sobre a pandemia de covid-19. A monetização do canal do Pânico gera entre US$ 5,2 mil e US$ 82,4 mil, o equivalente a R$ 25 mil e R$ 398 mil por mês.

Felicio – para quem a pandemia de covid-19, que já matou 656 mil brasileiros, é uma “fraudemia” – aparece em diversos vídeos negacionistas analisados pela reportagem, como alguns do canal de Maia. No início do governo de Jair Bolsonaro, ele chegou a ser cotado para o cargo de ministro do Meio Ambiente. 

Boa parte do conteúdo que nega a existência do aquecimento global é respaldado pelos argumentos do “cientista” Ricardo Felício (YouTube/Jovem Pan/Reprodução)

Critérios desiguais

Além de manter anúncios em conteúdos com mentiras sobre as mudanças climáticas, o algoritmo do YouTube parece não conseguir identificar nem mesmo quais vídeos abordam o tema. Dos 37 vídeos que propagam ideias negacionistas sobre o clima, apenas 15 apresentam o chamado “painel informativo com contexto do assunto”, uma medida aplicada pela rede desde 2018 para “temas propensos à desinformação”, de forma a apresentar ao usuário informações apuradas e contradizer mentiras que podem estar circulando na plataforma. No painel, a rede explica que “as mudanças climáticas são transformações a longo prazo nos padrões de temperatura e clima, principalmente causadas por atividades humanas, especialmente a queima de combustíveis fósseis”, e leva o público ao site da ONU. 

A plataforma aplica o painel em alguns conteúdos, mas não esclarece os critérios que utiliza na seleção. O vídeo “Ricardo Felício desmente farsa do aquecimento global I Identidade Geral”, que somou 140 mil visualizações pelo canal Revista Novo Tempo, é um dos que não apresentam o texto. Escrever “farsa do aquecimento global” no título não foi o suficiente para que o algoritmo da rede pudesse identificar o tom negacionista do conteúdo e alertar seus usuários. 

YouTube responde

Por meio de sua assessoria de imprensa, o YouTube afirmou que “em geral, nossos sistemas não recomendam ou deixam em evidência conteúdo que apresente desinformações sobre mudanças climáticas” e que age “rapidamente” sobre conteúdos em desacordo com suas políticas. O YouTube também afirmou que exige que todos os canais monetizados cumpram suas regras. Leia a resposta na íntegra.

Clique aqui para ler a reportagem completa da agência de jornalismo investigativo Pública