Princípio da negligência

STF despreza apelos e dá sinal verde à liberação indiscriminada de transgênicos

Maioria do Supremo Tribunal Federal, Cristiano Zanin inclusive, votou a favor da lei que permite a aprovação de sementes e outros organismos geneticamente modificados mesmo sem os estudos necessários. Prevaleceu o interesse da indústria sobre o cuidado com a saúde e o meio ambiente

Fernanda Guerra Gil/Wikimedia Commons
Fernanda Guerra Gil/Wikimedia Commons
Desde 2005, os transgênicos dominam a produção agrícola. Plantas geneticamente modificadas recebem muito mais agrotóxicos e entram na produção de uma gama de alimentos ultraprocessados

São Paulo – A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ignorou completamente os apelos da comunidade científica e ambientalista e deu sinal verde para a continuidade da liberação indiscriminada de transgênicos. Oito dos onze ministros votaram contra uma ação da Procuradoria-Geral da República (PGR), de 2005, que questionava dispositivos da Lei de Biossegurança, aprovada no mesmo ano. Entre outras coisas, essa legislação conferiu à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio) a exclusividade no processo de aprovação.

O problema é que essa prerrogativa acabou sendo transformada em um balcão, no qual são carimbadas as liberações de organismos geneticamente modificados mesmo sem o menor rigor científico. Além disso, a lei indica, na prática, que a fiscalização é tarefa exclusiva dos órgãos federais, excluindo as demais esferas. Com isso esvaziou o exercício da função em relação a essa tecnologia por estados e municípios.

Assinada pelo então procurador-geral Cláudio Fonteles, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3526) contestou ao todo mais de 20 dispositivos da lei que estabelece normas e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGMs). E também seus derivados, como sementes, leveduras e outros, produzidos, na maioria dos casos, em laboratórios de empresas transnacionais. Com o voto da maioria pela inconstitucionalidade da ação – e não dos pontos questionados – o país segue de porteira aberta para o interesse dessas indústrias.

A ação ficou engavetada pelo então ministro Celso de Mello, já aposentado. Seu sucessor, ministro Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro (PL), herdou a relatoria da ação, que passou a ser julgada após 16 anos. Ele foi coerente com seu posicionamento, já conhecido, em favor das facilidades para as indústrias de transgênicos, em sua maioria, produtoras de agrotóxicos. Essas empresas, aliás, passaram a lucrar ainda mais com as novas sementes geneticamente modificadas, que respondem pela maior parte dessas tecnologias aprovadas.

Isso porque essas plantas são alteradas em laboratório justamente para sobreviver a doses cada vez maiores dos venenos agrícolas, exigidas para matar insetos e “plantas invasoras” que naturalmente vão criando resistência a eles.

Propaganda enganosa dos fabricantes de transgênicos e agrotóxicos

O ministro Gilmar Mendes, outro entusiasta desses produtos e da propaganda enganosa das indústrias interessadas, havia pedido vista do processo. E o devolveu em julho passado, quando votou contra a ação da PGR. Seguiram seu voto os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, André Mendonça e até Cristiano Zanin.

Indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o advogado assumiu em agosto a cadeira de Ricardo Lewandowski, aposentado. E em um de seus primeiros julgamentos na Corte, favoreceu o mercado de transgênicos.

Foram votos vencidos os ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia e Rosa Weber. Em suas manifestações em defesa do cumprimento à Constituição, destacaram a Carta Magna alinhada à boa ciência enquanto vigilantes da saúde e do meio ambiente equilibrado para todos.

Em seu artigo 225, a Constituição Federal determina que atividades com potencialidade de prejuízos ao meio ambiente, como os transgênicos, devem ser submetidas obrigatoriamente a estudos prévios de impacto ambiental. No entanto, a Lei de Biossegurança tornou facultativa a realização dos estudos prévios. E ao dar à CTNBio o poder de inclusive dispensar esses estudos, descumpre a Constituição e também os principais documentos sobre transgênicos, como a Convenção sobre Diversidade Biológica e o Protocolo de Cartagena.  

Em seu voto dissonante, o ministro Fachin destacou que a regulação internacional dos organismos geneticamente modificados se dá ainda em um ambiente de dúvidas sobre os seus impactos na saúde humana e meio ambiente. Isso torna necessária a realização de estudos prévios de impactos. “Há graves incertezas quanto às consequências relativas ao seu impacto nos ecossistemas, na biodiversidade, nos modos tradicionais e autóctones de vida, e em questões socioculturais”, disse.

Pelo menos 750 estudos sobre riscos dos OGMs foram desprezados pela CTNBio

Segundo a argumentação técnica e jurídica da organização Terra de Direitos e Associação Nacional de Pequenos Agricultores, que subsidiaram o STF na condição de Amicus Curiae, ao menos 750 estudos científicos indicam riscos e incertezas dos OGMs. E todos eles foram desconsiderados pela CTNBio desde a sua criação. E segundo o Grupo de Trabalho da Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia, na maioria das vezes são as empresas que decidem, por conta própria, se vão ou não monitorar os efeitos de seus produtos no ambiente e na saúde. 

O integrante do GTBio, Leonardo Melgarejo, disse ao site da Terra de Direitos, que com este voto a maioria do STF dá um grave recado à sociedade: que “está validado o descumprimento de preceitos constitucionais e a negação de compromissos internacionais relativos a possíveis danos ambientais e a compromisso de ações preventivas, precautórias, em situações de dúvida quanto à riscos de danos ambientais”, diz.  

Segundo Melgarejo, que é engenheiro agrônomo e foi integrante da CTNBio, a maioria do Supremo ignorou os fatos ao votar pela manutenção da Lei como está. E desprezou:

  • a forte conexão dos transgênicos com os agrotóxicos;
  • morte massiva das abelhas, que atuam na reprodução vegetal;
  • contaminação e alteração do ciclo da água;
  • redução na produtividade dos solos e
  • o descumprimento das promessas que os transgênicos levariam à redução no uso de agrotóxicos e ao fim da fome. 

“Desde o início da vigência da Lei, aprovada sem debate popular, nenhum pedido de liberação comercial de transgênicos foi negado, mesmo aqueles embasados em pesquisas incompletas. A possibilidade de dispensa de Estudos de Impacto Ambiental se tornou a regra das decisões da CTNBio”, destacou a assessora jurídica da Terra de Direitos, Tchenna Maso. 

Para ela, a manutenção dos dispositivos da lei acarreta riscos à sociobiodiversidade brasileira. “Isso porque protege os interesses das empresas transnacionais que têm a certeza da aprovação de seus produtos, em detrimento dos interesses coletivos diante dos riscos de contaminação. As normas técnicas estabelecidas pela CTNbio não têm se mostrado efetivas para proteger as e os camponeses e seus cultivos tradicionais da contaminação por transgênicos”.    

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Redação: Cida de Oliveira, com Terra de Direitos