Em nome dos latifúndios

Projeto de Doria promove especulação com terra de assentamentos rurais

Tramitando em regime de urgência na Alesp, proposta teria como objetivo garantir direitos da reforma agrária mas, na prática, deve favorecer a formação de novos latifúndios. Lideranças sem-terra alertam que o PL pode ser uma armadilha para os trabalhadores rurais

Cetas/Unesp
Cetas/Unesp
Para o MST, projeto de Doria ataca os sonhos das famílias assentadas e cria uma ilusão que pode prejudicar muitas delas no futuro

São Paulo – Aparentemente benéfico para as cerca de 7 mil famílias assentadas da reforma agrária pelo estado de São Paulo, o Projeto de Lei (PL) 410/2021 na prática privatiza os assentamentos e pode prejudicar a produção de alimentos na região. De autoria do governador João Doria (PSDB), a proposta permite que os trabalhadores rurais se tornem proprietários definitivos das terras e não mais beneficiários com concessão de uso de terras públicas.

Para a dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Kelli Mafort, o projeto “ataca” os sonhos das famílias assentadas. A medida ainda “cria uma ilusão” que pode prejudicar muitas delas no futuro.

“O governador Doria quer que esses assentados sejam proprietários de terra. Eles poderão colocar essa terra numa garantia bancária diante de um financiamento e, se não pagarem, o banco pode tomá-la. O assentado vai poder especular, vender, então o que ele quer é tornar a terra um balcão de negócios, mexendo com os sonhos das famílias”, destaca Kelli.

Ameaças ao direito à terra

“O PL tem algumas armadilhas. Uma delas é que existem condições resolutivas no projeto de lei e, se não forem cumpridas, o assentado perde o título. Uma dessas condições é que os assentados têm que pagar 10% do Valor da Terra Nua (VTN). Mas, infelizmente, em algumas regiões do estado de São Paulo onde as terras estão muito valorizadas, isso significa R$ 100 mil, 150 mil reais. Estamos em uma crise econômica, em uma pandemia, como os assentados vão pagar por essa terra? E em qual tempo e condição? O PL não fala, isso estará na caneta do governador que via decreto vai decidir as condições. E os assentados podem perder a terra, a casa, tudo o que eles têm. É uma política nefasta”, completa a dirigente do MST.

Segundo o texto, proprietários rurais que venham a adquirir as terras de assentamentos encontrarão limitações para evitar a criação de novos latifúndios no estado. No entanto, Kelli explica que o projeto possui brechas que permitem a concentração. Ainda segundo ela, a falta de garantia confirma um ataque à reforma agrária idêntico ao pretendido pelo governo de Jair Bolsonaro.

Desmonte das políticas no campo

Outro problema é que muitos assentados da reforma agrária acabam tentados ao abandono das terras pela própria ineficácia das políticas de apoio à agricultura familiar nos últimos anos. Assentado e ex-presidente da Federação da Agricultura Familiar do Estado de São Paulo (Fetaesp), Elvio Mota avalia que o governo Doria se aproveita da situação para fazer o projeto avançar.

Mota lembra que iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), destinado a jovens e mulheres, estão em processo de desmonte.

“A gente conta nos dedos hoje as famílias que conseguiram acessar esses dois Pronafs”, conta o ex-presidente da Fetaesp. “Ficamos anos e anos discutindo com os governos a dinâmica, o fortalecimento e a valorização da educação e das escolas do campo, e hoje estão todas sucateadas. Conseguimos avançar muito com esses programas, mas hoje eles não existem. O que muitos estão pensando é em vender, há uma substituição do valor da terra enquanto valor social, espaço de produção de alimentos, da vida, para esse olhar para a terra como valor de mercado. Os assentamentos próximos às cidades, por exemplo, paulatinamente vão deixar de existir. Isso porque essas terras serão comercializadas, vão servir ao mercado imobiliário”, adverte.

O projeto tramita em regime de urgência na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), o que faz com que ele avance de forma mais rápida no processo legislativo. Na semana passada, em uma audiência pública de quase quatro horas, movimentos sociais, o Conselho de Diretos Humanos paulista e pesquisadores se manifestaram contra a sua aprovação.

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